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Supersimples e responsabilidade dos sócios

Publicado em:

Valor Online

Gilberto Baptista Martins

Não obstante a promulgação da Lei nº 8.620, de 1993, na qual se pretende responsabilizar solidariamente os sócios das sociedades limitadas pelos débitos da sociedade ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e que vem sendo contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) por duas ações diretas de inconstitucionalidade (Adins) – de números 3.642 e 3.672 -, mais uma lei é recentemente promulgada neste sentido. Desta feita temos a Lei Complementar nº 123, de 2006, na qual é instituído a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas e o sistema simplificado de arrecadação de tributos – o Supersimples.

Apesar de conceber um tratamento diferenciado e favorecido às referidas empresas, a lei do Supersimples nasce envolta em incertezas, seja por normas ainda necessitando de definição como outras passíveis de questionamento por flagrante inconstitucionalidade. No que tange à inconstitucionalidade, foco do presente artigo, salienta-se os parágrafos 3º e 4º do artigo 78, que dispõem que, mesmo após a baixa do registro da empresa, seus titulares ou sócios, ainda que nunca tenham participado da gestão da empresa, além dos administradores, serão solidariamente responsáveis – respondendo com seus bens pessoais – pelos tributos ou contribuições que não tenham sido pagos ou recolhidos, não somente referentes ao período de ocorrência dos respectivos fatos geradores como também àqueles que venham a ocorrer em períodos posteriores.

Contudo, tais dispositivos afrontam os comandos da Constituição Federal, do Código Tributário Nacional (CTN), da Lei de Execuções Fiscais, do Código Civil e da Lei das Sociedades Anônimas, os quais se encontram lastreados no histórico instituto de direito da limitação da responsabilidade, no qual se exige, para tal responsabilização, a comprovação de que o sócio ou o administrador tenha dado causa ao referido débito por um ato abusivo, praticado com violação à lei, ao contrato social ou estatuto.

Dispõe a Lei de Execuções que a execução judicial para a cobrança da dívida ativa da União e de suas autarquias será por ela regida, e que à dívida ativa aplicam-se as normas relativas à responsabilidade previstas na legislação tributária, civil e comercial. Assim, demonstra-se que, ao se perquirir pela responsabilidade pessoal do sócio, será necessário, para o seu alcance, analisá-la sob a ótica do entrelaçamento das citadas legislações e não de forma estanque.

A Constituição Federal, por sua vez, prescreve que compete à lei complementar regular as limitações ao poder de tributar e estabelecer normas gerais às obrigações e aos créditos. Apesar de a legislação que criou o Supersimples ter status de lei complementar, o legislador, além de não revogar qualquer dispositivo do CTN, nos demonstra, claramente, em suas razões do veto ao artigo 69 (que tratava da responsabilidade limitada do empreendedor individual) que “não se pode, agora, por meio de norma que sequer tem como objeto principal dispor acerca de normas gerais em matéria tributária, alterar a disciplina já instituída pelo CTN”, além de ressaltar que o código regulou toda a matéria constitucional relativa à responsabilidade tributária.


Não há como permitir que todo o sistema jurídico atual seja modificado em seu conteúdo e limitado em seu alcance


Por conseguinte, o artigo 134, inciso VII do CTN determina que “nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis; VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas”. Assim, mesmo que a sociedade limitada venha a ser de pessoas, a simples demonstração de que o sócio não teve participação no descumprimento da obrigação tributária é suficiente para eximi-lo de tal responsabilidade. Ademais, no capítulo pertinente à interpretação e integração da legislação tributária no sistema jurídico, dispõe o artigo 110 que a lei tributária não pode alterar o conteúdo e o alcance de institutos de direito privado para definir competência tributária.

Salienta-se que o instituto da limitação de responsabilidade foi desenvolvido ao longo de mais de dois séculos para conceber a segurança legal ao investidor, o que possibilitou o desenvolvimento econômico e social de distintos países. Devido aos irrefutáveis benefícios desse instituto, o mesmo foi inserido em nosso ordenamento pelo Código Civil de 1916 e pela Lei das Limitadas, de 1919. Destaca-se que o Código Civil atual, que veio conjugar essas duas legislações, reafirma esse consagrado instituto. Na mesma linha, o CTN de 1966 e a Lei das S.A. de 1976 solidificaram esta mesma prescrição. Por fim, a Constituição Federal de 1988 petrifica a questão, no artigo 173, parágrafo 5°, ao determinar que somente os dirigentes poderão ser responsabilizados pela prática de atos abusivos e que as punições deverão ser compatíveis com o seu tipo societário.

Portanto, não há como se permitir, através das normas em foco, que todo o sistema jurídico atual, histórico e constitucionalmente assentado no instituto da limitação da responsabilidade seja modificado em seu conteúdo e limitado em seu alcance.

Cumpre salientar a declaração do secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, de que “há hoje 2,5 milhões de empresas inscritas no Simples”. Desta forma, considerando que a migração do Simples para o Supersimples ocorrerá de forma automática e que a grande maioria das citadas empresas não encontram em seus quadros especialistas em normas tributárias, chega-se à conclusão de que a nova regra de responsabilização solidária pode até vir a ser questionada como um verdadeiro estelionato legal.

Por fim, nunca é demais ressaltarmos o estarrecimento que vem causando ao meio jurídico, especialmente no campo das regras tributárias, o excesso de normas que nascem envoltas em vácuos legislativos que muitas vezes são interpretadas e impostas casuisticamente por segmentos da administração destituídos de competência para tal, gerando um custo kafkiano para as empresas envolvidas, assim como normas promulgadas em completo desrespeito e despreparo para com o Estado de direito e à ordem econômica constitucional.

Gilberto Baptista Martins é advogado especialista em direito tributário e sócio do escritório Braz, Mello, Baptista Martins Advogados

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