Relação entre sigilo bancário e evasão fiscal
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7 de Fevereiro de 2008 – A edição da Instrução Normativa (IN) nº 802, de 2007, da Receita Federal do Brasil, ofereceu pretexto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para ingressar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), em que questiona a constitucionalidade de artigos da Lei Complementar (LC) nº 105.
Até o início da década de 90, a Receita Federal não encontrava óbices para requisitar informações bancárias, no curso dos procedimentos de fiscalização. Em dado momento, pretendeu obter informações sistemáticas sobre movimentações com cartões de crédito. Divergências quanto à periodicidade na entrega de informações e, como pude constatar posteriormente, a percepção de que esse tratamento poderia resultar em desvantagem comparativa do cartão de crédito vis-à-vis outras formas de pagamentos motivaram inúmeras ações judiciais que findaram por subtrair completamente aquela prerrogativa do fisco. A alegação mais freqüente era que seria necessária lei complementar para facultar o acesso àquelas informações.
As restrições alcançaram tal proporção que, quando da vigência do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF), se exigia da Receita Federal a responsabilidade por administrar esse tributo, sem a possibilidade, contudo, de examinar o cumprimento da obrigação. Algo tão esdrúxulo que chega a ultrapassar os limites do caricato.
Na legislação que instituiu a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), houve um pequeno progresso. Admitia-se, na lei original, a possibilidade de a Receita fiscalizar o cumprimento da obrigação. Vedava-se, todavia, o lançamento de outros tributos a partir de informações oriundas da CPMF. Menos mal.
Essa limitada autorização legislativa permitiu à Receita identificar flagrantes desvios entre renda declarada e movimentação observada: empresas inativas e pessoas físicas isentas, por exemplo, realizavam, paradoxalmente, expressivas movimentações financeiras; cerca de 34% dos contribuintes não haviam pago, além da própria CPMF, nenhum outro tributo, qualificando-se, portanto, como verdadeiramente isentos ou meros sonegadores.
A divulgação dessas informações produziu um consenso político em favor da revogação da norma restritiva. A partir daí, a Receita passou a fazer uso de informações da CPMF nas investigações fiscais. No ano passado, dados da CPMF permitiram à Receita instaurar quase 2 mil procedimentos fiscais, que redundaram em lançamentos de outros tributos, em montante correspondente a R$ 21 bilhões (58% do valor arrecadado diretamente pela CPMF!).
Registre-se, entretanto, que movimentação financeira é mero elemento indiciário de evasão fiscal. Isoladamente, nada significa. É, todavia, importante indício que permite ao fisco iniciar investigações que poderão resultar ou não em lançamentos.
Quase concomitantemente com a revisão do âmbito normativo da CPMF, o Congresso Nacional aprovou, por iniciativa parlamentar, o que viria a ser a Lei Complementar nº 105, de 10.01.2001, que disciplinou o acesso do fisco a informações protegidas por sigilo bancário.
Essa lei, em seu artigo 6º, permite que as administrações fiscais da União, dos estados e dos municípios possam "examinar livros, documentos e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras", desde que tenha havido prévia instauração de procedimento fiscal e que tais exames sejam considerados indispensáveis às investigações. Restabeleceu-se assim prerrogativa do fisco federal, o que, de resto, já ocorria em inúmeros países.
O art. 5º da LC nº 105, por sua vez, previa que a União disciplinaria a periodicidade e os limites de valores, segundo os quais as instituições financeiras informariam à Receita operações realizadas por seus usuários, a exemplo de movimentações financeiras e operações com cartão de crédito.
Esses dois artigos têm alcances distintos: o art. 6º (acesso incidental) requer instauração prévia de procedimento, prevê acesso pela administração fiscal de qualquer ente federado e abrange informações de contas bancárias; já o art. 5º (acesso sistêmico) não demanda existência de procedimento fiscal, o acesso é restrito ao fisco federal e envolve tão-somente informações relativas a movimentações financeiras, sem que haja a identificação da fonte dos recursos e da natureza do gasto.
Na mesma data em que foi sancionada a LC nº 105, foi editado o Decreto nº 3.724 que instituiu severíssima regra para disciplinar o acesso do funcionário fiscal a informações protegidas por sigilo bancário. Desde então, tal prática foi incorporada à rotina do fisco, sem que se conheçam excessos ou desvirtuamentos. A evasão fiscal, entrementes, conheceu seguidos revezes.
O art. 5º somente veio a ser disciplinado por meio do Decreto nº 4.489, de 28.11.2002, igualmente de caráter severo, e do Decreto nº 4.545, de 28.12.2002, que vedou expressamente a prestação de informações relativas a movimentação financeira, porque a CPMF já as fornecia.
Em 2003, a Receita instituiu declaração relativa à movimentação com cartões de crédito. Não há registro de reclamação de contribuintes ou das administradoras dos cartões. Passou-se a dispor, apenas, de um instrumento a mais no combate à sonegação.
Com a extinção da CPMF, ressurgiu a necessidade de acesso sistêmico a informações relativas a movimentação financeira. Argüiu-se, no STF, sua inconstitucionalidade. Sobraram perguntas.
As informações sobre movimentação financeira eram tidas como constitucionais quando geradas por força da lei ordinária que criou a CPMF.
Por que, então, passariam a ser consideradas inconstitucionais quando obtidas em virtude de lei complementar? Os contribuintes informam o saldo de suas contas e aplicações em final de exercício, nas respectivas declarações de renda. Dados de movimentação financeira nada mais são do que saldos diários.
Seriam inconstitucionais as declarações de renda? De que forma a movimentação financeira seria capaz de revelar fonte de recursos ou natureza do gasto de uma conta bancária? A inconstitucionalidade parece ser muito duvidosa ou, então, é recente!
Proteger a intimidade do cidadão é dever do Estado. Guardar sigilo funcional é dever do funcionário, sob pena de cometimento de crime. Seria temerário, entretanto, restringir o uso comedido e correto pelo fisco de instrumentos eficazes no combate à sonegação, como bem demonstra a experiência recente brasileira.
(Gazeta Mercantil/Caderno A – Pág. 3) EVERARDO MACIEL – Consultor tributário e ex-secretário da Receita Federal. Próximo artigo do autor em 28 de fevereiro)