Precatórios giram R$ 25 milhões por mês
Publicado em:
João Guedes
O acúmulo de mais de R$ 5 bilhões em precatórios não-pagos pelo Estado e a falta de recursos no governo para acelerar o pagamento desses títulos criou o cenário ideal para a consolidação do mercado de compra e venda desses papéis, que movimenta, em média, R$ 25 milhões por mês no Rio Grande do Sul pelo valor de face, ou o equivalente a cerca de R$ 5 milhões com deságio, segundo corretores que atuam nesse mercado.
A compra é feita por empresas especializadas em administração de créditos tributários, que oferecem aos detentores de precatórios valores entre 20% e 30% do valor de face do título. O principal argumento das empresas para adquirir o papel com um deságio de até 80% é a lentidão do governo no pagamento desses débitos e a possibilidade de negociá-los com ganhos. Há precatórios emitidos em 1999 que ainda não foram pagos.
Sem saber quando receberão o dinheiro devido pelo tesouro estadual, muitos credores acabam optando por vender seus precatórios, mesmo com o abatimento significativo no valor original do documento. Nas mãos das corretoras, os títulos são negociados com empresas interessadas em quitar débitos de ICMS com os papéis.
Para as empresas, o negócio é atrativo porque permite o pagamento do imposto pelo valor de face. Considerando o preço pago aos titulares dos precatórios e a comissão das corretoras, as empresas compram os títulos dos corretores com deságio médio de 60%. Dessa forma, é possível comprometer, por exemplo, quitar R$ 10 milhões em impostos com desembolso de R$ 4 milhões.
A Manlec é uma das empresas que, há pelo menos dois anos, utiliza esse recurso para pagar em juízo cerca de R$ 1 milhão por mês em ICMS. Ao todo, a empresa detém R$ 115 milhões em precatórios pelo valor de face.
O pagamento é contestado na Justiça pelo Rio Grande do Sul, uma vez que a legislação estadual rejeita o aproveitamento automático de precatórios no pagamento de qualquer tipo de imposto. Por isso, a utilização dos títulos vem sendo feita em juízo. O advogado tributarista Nelson Lacerda, diretor-presidente da Lacerda & Lacerda Advogados, explica que boa parte do deságio é justificada pela incerteza que as empresas ainda têm em relação ao emprego dos precatórios na quitação de dívidas com a Fazenda. No entanto, uma série de decisões judiciais sobre o tema no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos últimos meses criaram jurisprudência para novos processos, de acordo com o tributarista Nelson Lacerda.
As determinações devem multiplicar o uso dos precatórios para quitação de impostos, na avaliação do advogado, o que também deve valorizar os papéis. O diretor da Noblle Créditos Tributários, Wagner Dias, projeta um crescimento de até 30% no mercado de precatórios no próximo ano, repetindo a aceleração registrada no decorrer deste ano. Mensalmente, o escritório movimenta mais de R$ 2 milhões com a compra de precatórios, cujos valores de face superam R$ 10 milhões.
Decisões da Justiça incentivam o mercado de compra e venda
Para as instituições que atuam na compra e venda de precatórios, o principal incentivo para o aquecimento desse mercado são as decisões judiciais que vêm referendando os pedidos das empresas que se valem desses papéis para quitar Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Um dos exemplos é a determinação proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 11 de setembro deste ano, quando o ministro Eros Grau permitiu à gaúcha Rondosul Móveis e Esquadrias a utilização de precatórios alimentares vencidos para o pagamento do ICMS devido pela empresa.
A decisão marca um dos últimos passos para que a compensação de impostos com precatórios alimentares seja consolidada no judiciário. Atualmente, a legislação federal prevê sanções para os estados que deixam de pagar precatórios não-alimentares, que se referem principalmente a dívidas com pessoas jurídicas ou pagamento de desapropriações de terras.
Quanto aos precatórios alimentares (devidos a servidores e pensionistas do governo), a lei não estabelece qualquer tipo de punição aos estados em caso de inadimplência. Com isso, na falta de recursos para honrar as dívidas, os precatórios alimentares geralmente ficam de lado na divisão dos orçamentos públicos estaduais.
A decisão de setembro ainda deve ser referendada pelo pleno do STF, o que pode solidificar a jurisprudência sobre o tema e provocar uma avalanche de pedidos de pagamento de impostos por meio de precatórios. "O judiciário entende que o precatório é dinheiro que não foi pago por conta do próprio Estado", argumenta o diretor-presidente da Lacerda & Lacerda Advogados, Nelson Lacerda.
O reconhecimento da validade dos precatórios para amortização de impostos pelos tribunais superiores deve facilitar a vida de quem pretende utilizar o recurso, uma vez que os tribunais das instâncias inferiores passariam a seguir a mesma interpretação. Para o diretor-presidente da Curi Créditos Tributários, que movimenta entre R$ 2 milhões e R$ 4 milhões por mês com a compra de títulos, Cláudio Curi Hallal, a consolidação jurídica deve trazer uma redução no deságio, que poderá chegar a 50%. "O mercado vai crescer", prevê.
Hoje, os precatórios são utilizados de duas formas. A primeira é como garantia, sendo depositados judicialmente nos casos de empresas já autuadas pelo fisco ou para compensação direta do imposto devido pela empresa que comprou o precatório.
Rio Grande do Sul acumula perdas
de R$ 100 milhões neste ano
A Secretaria da Fazenda sabe o tamanho do prejuízo que o pagamento de impostos com precatórios traz para o Tesouro gaúcho. Segundo o diretor da Receita Estadual, Júlio César Grazziotin, o Estado deixou de arrecadar R$ 100 milhões em 2007 devido ao uso de precatórios no pagamento de ICMS, amparado por decisões judiciais.
O artifício tributário estaria emperrando a cobrança da dívida ativa, já que as empresas autuadas podem apresentar os precatórios como garantia, em vez de parte de seu patrimônio, por exemplo. "Usam um título que não tem relação nenhuma com o ICMS para pagar o imposto", argumenta Grazziotin.
O diretor lembra que não são apenas as empresas inadimplentes que estariam utilizando os precatórios para apresentar como garantia e impedir execuções judiciais por parte do Estado. Companhias que estão em dia com o ICMS também estão tentando pagar o imposto devido do mês, como forma de reduzir seus gastos com impostos. Nesses casos, a Sefaz considera o contribuinte inadimplente, aplicando multa de 120% sobre o valor não-pago.
As tentativas de utilização de precatórios vêm se multiplicando, conforme Grazziotin. Ele alerta que novas decisões da Justiça confirmando o emprego de precatórios podem agravar os problemas de caixa do Rio Grande do Sul. No entanto, confia na sensibilidade do poder judiciário para que isso não ocorra.
A expectativa de Grazziotin é embasada nos problemas que diversos estados estão enfrentando com o tema e o quanto a administração estadual poderia ficar insustentável com o uso massivo desse mecanismo. Além disso, ele aponta outros questionamentos do ponto de vista legal. "Como vai dar em garantia? Como algo que no mercado vale 20 pode garantir 100?", contesta.
Outro ponto é fato de uma empresa que apresenta um precatório de R$ 1 milhão, por exemplo, conseguir aproveitar a integralidade do valor, sem os descontos de previdência e imposto de renda que ocorreriam caso o título fosse pago diretamente ao seu titular original.
O emprego de precatórios tem como principal prejudicado o consumidor, na opinião de Grazziotin. Ao vender um produto, um comerciante cobra o ICMS inteiro. Mas, em vez de repassar esse dinheiro ao fisco, apresenta um título. "Como fica a justiça fiscal e a concorrência de mercado? A nossa expectativa é de que o judiciário reveja sua posição".