Personalidade jurídica não pode ser desconsiderada
Publicado em:
Por Alexandre Levinzon
Os tributaristas, no exercício de suas atividades, utilizam-se constantemente da definição de tributo dada pela lei, no caso o Código Tributário Nacional no artigo 3º:
“Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”
É assente na doutrina que o tributo não é sanção, conforme se depreende do dispositivo legal. A penalidade é um ato diverso do direito tributário e pertence ao ramo do Direito Administrativo, não estando dentro da definição legal de tributo. Nem mesmo as multas por falta de pagamento do tributo podem ser consideradas tributos, mas sim sanções de cunho administrativo.
Nesse sentido, cumpre citar entendimentos de renomados doutrinadores:
“No §1º do artigo, o legislador do CTN quis dar às multas fiscais, ou seja, ao crédito delas decorrente, o mesmo regime processual ao tributo (inscrição em dívida ativa, execução forçada, garantias e privilégios típicos do crédito tributário). Para tanto cunhou o §1º do art. 113. Mas o fez com desastrada infelicidade, passando a idéia de que tributo e multa se confundem, o que não é permitido pelo art. 3º do CTN, nuclear e fundante do conceito de tributo, eis que este último implique, juntamente com a multa, uma prestação compulsória, prevista em lei, em prol do Estado, dela se diferencia, precisamente, porque não é sanção de ato ilícito. Rigorosamente, a obrigação principal tem por objeto o pagamento do tributo. O não-pagamento do tributo é que origina uma multa à guisa de sanção. Todavia, não quitada a multa, esta pode ser exigida, como se fora do crédito tributário, juntamente com o tributo. A redação do §1º está a exigir reforma urgente.” (Grifos acrescidos)
(Coêlho, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 697-698)
“Ao tratar de obrigação tributária, interessa-nos a acepção da obrigação como relação jurídica, designando o vínculo que adstringe o devedor a uma prestação em proveito do credor, que, por sua vez, tem o direito de exigir essa prestação a que o devedor está adstrito. A obrigação tributária, de acordo com a natureza da prestação que tenha por objeto, pode assumir as formas que referimos (dar, fazer ou não fazer).
Por conseguinte, a obrigação, no direito tributário, não possui conceituação diferente da que lhe é conferida no direito obrigacional comum. Ela se particulariza, no campo dos tributos, pelo seu objeto, que será sempre uma prestação de natureza tributária, portanto um dar, fazer ou não fazer de conteúdo pertinente a tributo. O objeto da obrigação tributária pode ser: dar uma soma pecuniária ao sujeito ativo, fazer algo (por exemplo, emitir nota fiscal, apresentar declaração de rendimentos) ou não fazer algo (por exemplo, não embaraçar a fiscalização). É pelo objeto que a obrigação revela sua natureza tributária.”
(Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 245)
“QUE NÃO SE CONSTITUI EM SANÇÃO DE ATO ILÍCITO – O dever de levar dinheiro aos cofres (tesouro = fisco) do sujeito ativo decorre do fato imponível. Este, por definição, é fato jurídico constitucionalmente qualificado e legalmente definido, com conteúdo econômico, por imperativo da isonomia (art. 5º, caput e inciso I da CF), não qualificado como ilícito. Dos fatos ilícitos nascem multas e outras conseqüências punitivas, que não configuram tributo, por isso não integrando o seu conceito, nem submetendo-se a seu regime jurídico.” (Grifos acrescidos)
(Ataliba, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6ª Edição. Malheiros Editores, São Paulo, 2005, p.35)
“Assim como se denomina obrigação tributária ao liame jurídico que se estabelece entre dois sujeitos – pretensor e devedor – designa-se por sanção tributária à relação jurídica que se instala, por força do acontecimento de um fato ilícito, entre o titular do direito violado e o agente da infração. Além desse significado, obrigação e sanção querem dizer, respectivamente, o dever jurídico cometido ao sujeito passivo, nos vínculos obrigacionais, e a importância devida ai sujeito ativo, a titulo de penalidade ou indenização, bem como os deveres de fazer ou de não fazer, impostos sob o mesmo pretexto.” (Grifos acrescidos)
(Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 517)
Como se vê, é assente o entendimento de que o tributo não é multa e por isso a penalidade deve ter tratamento diverso do instituto previsto no artigo 3º do CTN.
Diante disso, verifica-se que em inúmeras situações o Fisco requer ao Judiciário, durante o processo de execução fiscal, a desconsideração da personalidade jurídica a sócios e administradores da sociedade executada tomando-se como fundamento o artigo 135 do CTN, in verbis:
“Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.”
Ocorre que o dispositivo legal prevê que os sócios e administradores podem ser responsabilizados por “obrigações tributárias”, ou seja, obrigações que tem como objeto um tributo.
Assim, conforme exposto anteriormente, pelo fato da multa não ser objeto do tributo, não há como estender aos sócios e administradores a desconsideração da personalidade jurídica com base no CTN no que tange a penalidades. Em suma: o sócio ou administrador só pode ser exigido do valor do tributo com base no CTN, uma vez preenchidos os requisitos para tanto, e não do valor da multa, uma vez que esta não é tributo.
Cumpre salientar que o conceito de “obrigação tributária” dado pela doutrina não abrange a multa, mas tão somente o tributo.
Para que a cobrança da multa fosse estendida ao sócio ou administrador por desconsideração da personalidade jurídica, entendemos que seria necessário preenchimento dos requisitos do artigo 50 do Código Civil, litteris:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
Interessante notar que a distinção entre multa e tributo também é feita na Lei de Falências e Recuperações, na medida em que o tributo é cobrado muito antes na ordem da falência do que as multas. Essa regra respeita a previsão do artigo 3º do CTN, fazendo clara distinção entre os dois institutos (tributo e multa).
Conclui-se, igualmente, dessa forma, que o descumprimento das obrigações acessórias não pode ser imputado aos sócios e administradores com fundamento no art.igo 135 do CTN, vez que esse descumprimento gera exclusivamente a obrigação ao pagamento de multa, essa, repita-se, de cunho administrativo e não tributário.
Note-se que o próprio CTN só admite a imputação do pagamento da obrigação acessória às pessoas obrigadas às prestações que constituam o seu objeto, ou seja, a aqueles que tinham a possibilidade de cumprir a obrigação acessória (emitir a nota fiscal, entregar declaração ao fisco, por exemplo), in verbis:
"Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.
Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:
I – contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;
II – responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.
Art. 122. Sujeito passivo da obrigação acessória é a pessoa obrigada às prestações que constituam o seu objeto."
Como via de regra, não é possível exigir a obrigação acessória do responsável, uma vez que ele não tem como cumpri-la, mas apenas o contribuinte. Assim, não é possível a responsabilização do primeiro quanto às multas decorrentes de obrigação acessória.
Nem se poderia alegar que a obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária (artigo 113, parágrafo 3º, do CTN), o que, em tese admitiria a responsabilização dos sócios e administradores com base no artigo 135 do CTN. Ou mesmo invocando–se o parágrafo 1º do artigo 113 o qual prevê que “a obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente”.
Primeiramente, o inadimplemento da obrigação acessória não é fato gerador. Em nenhum momento ele se configura em tributo. Não existem fatos geradores como “falta de entrega de DCTF” ou “falta de emissão de nota fiscal”. Existe sim uma penalidade para esses atos e essa é uma penalidade que gera uma cobrança de cunho administrativo e não tributário.
Quanto ao parágrafo 1º do artigo 113 do CTN, a legislação admite a cobrança conjunta do tributo e multa, mas não admite a desconsideração da personalidade jurídica ou a responsabilização (do valor das multas) dos sócios e administradores com base no Código Tributário Nacional. Isso por que, ainda que façam parte do mesmo crédito tributário, são institutos distintos. Não se pode ignorar o fato de que o artigo 135 do CTN só admite a responsabilização de débitos relativos à obrigação tributária, que tem por objeto o tributo e não a multa.
Deste modo, podemos concluir que cabe ao julgador analisar a desconsideração da personalidade jurídica sob dois ângulos, aplicando ao tributo o artigo 135 do CTN, se entender que estão preenchidos os requisitos, e à multa o artigo 50 do Código Civil.