Pagar ou não pagar, eis a questão: o ICMS entre estabelecimentos e a ADI 49
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Consultor Jurídico
“Ser ou não ser, eis a questão”, é a dúvida que atormenta Hamlet, personagem de Shakespeare, na peça que leva seu nome. Situação semelhante toma conta de alguns contribuintes (simplificando: os comerciantes) após o julgamento da ADC 49. A dúvida é “pagar ou não pagar, mesmo sendo indevido o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) nas transferências entre estabelecimentos do mesmo titular”.
Observem que não se trata de um processo envolvendo diretamente Fisco versus contribuintes. Não. Os contribuintes venceram a demanda, mas, sob certa visão, perderão dinheiro e será melhor pagar o ICMS, mesmo nas operações em que ele juridicamente não seja devido. Pareceu estranho? Você está confuso? Decorre do manicômio tributário presente na sociedade brasileira, de que nos falava Alfredo Augusto Becker escrevendo acerca do século passado.
Sob o aspecto jurídico a situação é bastante simples, e soa até mesmo curioso que se esteja discutindo isso há décadas. Quando uma empresa envia mercadoria de um estabelecimento para outro, com singelo deslocamento físico dos bens envolvidos, não há incidência do ICMS. Isso é pacífico desde a Súmula 166 do STJ, editada em 1996, e desde antes da CF/88, no âmbito do antigo Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM). Abordei esse assunto em outra coluna, mencionando um texto de Francisco Sávio Mileo Filho, publicado na revista do Instituto Brasileiro Direito Tributário (IBDT), “Direito Tributário Atual”.
Esse assunto retornou a julgamento no STF através da ADC 49, sob relatoria do ministro Fachin, que confirmou o entendimento sedimentado. Assunto rotineiro para os tributaristas, sem maior impacto jurídico. Nas franjas do debate discutia-se uma importante filigrana acadêmica: essa operação se trata de: a) imunidade; b) não incidência; ou c) inexistência do aspecto material do ICMS, pois não se trata de comercialização? Registro como filigrana pois, sob qualquer enfoque, o contribuinte não é obrigado a pagar, embora entenda que se trata da hipótese “c”.
Isso posto, assunto encerrado, STF pacificado, e, como dizem os latinistas: Roma locuta, causa finita.
Eis que surge um vulcão sob a aparente calmaria. Alertados pelos contadores e outros profissionais de auditoria, começa-se a ver um problema de crédito, tecnicamente um problema contábil, que tentarei explicar de forma didática.
Suponhamos que algumas mercadorias tenham sido adquiridas para o estabelecimento A e, com elas, tenham vindo créditos de ICMS no valor de R$ 100. Ocorre que tais mercadorias precisarão ser deslocadas para o estabelecimento B, do mesmo contribuinte/comerciante. Haverá incidência de ICMS? Obviamente que não, sob o prisma jurídico, como acima exposto.
Todavia, observemos onde reside o problema. Se o estabelecimento A transfere as mercadorias ao estabelecimento B, sem ICMS, o crédito de R$ 100 remanescerá no estabelecimento A, embora a venda vá ocorrer em B. Portanto, se o crédito de ICMS não segue a mercadoria, pode ocorrer que o comerciante pague imposto decorrente da apuração contábil em B (pois o crédito não foi para B), e não o pague em A (que acumulou o crédito). Logo, para fins de caixa, existe um problema contábil bem identificado — entre outros expostos de forma mais técnica no texto que Peroba e Gandara escreveram nesta ConJur, e Daniel Frasson comentou para o Valor.
Dividamos o problema em dois âmbitos, para mostrar o dilema do caso, entre a apuração contábil e o pacificado entendimento jurídico: o interno a cada estado e o interestadual, isto é, nas operações entre estados.
Se os estabelecimentos A e B estiverem dentro do mesmo Estado, deve-se olhar a legislação estadual que rege esse tipo de operações, e se poderá constatar que, em alguns deles, é permitida a apuração concentrada do ICMS, ou seja, reúne-se todas as operações que envolvem o ICMS dentro do mesmo estado e os créditos acumulados no estabelecimento A servirão para quitar os débitos correntes que surgirão no estabelecimento B, e, com isso, o problema deixa de existir. Ocorre que nem todos os estados permitem esse tipo de apuração concentrada, e, nestes, o problema persistirá.
Por outro lado, para as operações interestaduais não existe atualmente solução normativa que permita uma apuração concentrada. Logo, se os estabelecimentos A e B estiverem em estados diferentes, inexoravelmente haverá a acumulação de créditos em A, e o pagamento de ICMS em B. Mais uma vez, aflora o problema de caixa.
O problema está identificado entre a convicção jurídica e a apuração contábil, que fatalmente ocorrerá nas operações internas (em alguns estados) e em todas as operações interestaduais que envolverem a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular. E se trata de um problema de caixa do contribuinte/comerciante, que poderá ser perene.
Exposto o problema, qual a solução?
Arrisco algumas sugestões, pois, embora pouco conheça de contabilidade, escrevo semanalmente nesta ConJur sobre Direito Tributário (às segundas, compartilho esta coluna Justiça Tributária com Raul Haidar) e sobre Direito Financeiro (às terças, em semanas alternadas, divido a coluna Contas a Vista com Élida Graziane Pinto).
O ideal é que surja uma norma permitindo que o comerciante transfira os créditos entre seus estabelecimentos, através da nota fiscal de transferência, mesmo quando não realize vendas. Essa norma pode ser oriunda do Congresso (uma lei) ou do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Não há dúvida que a primeira hipótese é a ideal, mas nem sempre advém com a agilidade necessária. A segunda hipótese seria mais ágil, todavia, dificilmente ocorrerá, pois isso implicará em queda de arrecadação. Ficarei feliz se estiver errado nesse âmbito.
Outra possibilidade é isso vir a ser decidido pelo STF, em sede de ações originárias, ou no curso da ADC 49 (embargos de declaração ou reclamação — a conferir), pois o problema jurídico inegavelmente foi bem equacionado, mas não o financeiro. Logo, será necessário que o STF se manifeste sobre esse específico aspecto, sob pena de os contribuintes/comerciantes terem juridicamente ganho o processo, mas o terem perdido financeiramente.
Uma terceira possibilidade que vislumbro, esta, sim, completamente inserida no manicômio tributário, é de os comerciantes continuarem a pagar o imposto, mesmo sendo indevido — e mesmo sabendo que é indevido — a fim de transferir esses créditos de ICMS em conjunto com as mercadorias transferidas. Deve se tornar um caso único na literatura tributária mundial: para economizar, os contribuintes passam a pagar um tributo que sabem juridicamente indevido. Eis a dúvida hamletiana do contribuinte neste caso: pagar ou não pagar, eis a questão.
Tudo isso aponta para a necessidade de reforma do sistema de tributação do consumo no Brasil, mas que deve vir no bojo de uma completa reforma tributária, com R maiúsculo, e não as reformas fatiadas e meias-solas que estão sendo propostas.
Completamente louco tudo isso, não? O manicômio tributário de Alfredo Augusto Becker está presente e sendo disseminado.