Os riscos na aquisição de bens
Publicado em:
Rodrigo R. B. Martinez
Imagine-se adquirindo um bem. Você analisa, por exemplo, a matrícula do imóvel ou o Renavam do veículo. Analisa também a documentação do vendedor, estando tudo em conformidade, sem nenhum apontamento. Você registra o bem em seu nome, seja no cartório de registro de imóveis ou no Detran competentes. Existe algum risco de você perder a propriedade dos bens, posteriormente? Infelizmente, sim.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vinha se posicionando favoravelmente aos compradores de boa-fé, ou seja, aqueles que levantam informações sobre o vendedor e não encontram apontamentos negativos, portanto sem condições de concluir que, de alguma maneira, o vendedor estivesse impedido de dispor de seu bem. Esse egrégio tribunal superior inclusive expediu, em 18 de março de 2009, a Súmula nº 375. O texto diz que "o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente".
Esse entendimento é aplicável a hipóteses de fraude à execução, nos termos do artigo 593, II, do Código de Processo Civil. O texto diz que "considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: (…) II- quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência". Ou seja, têm-se a fraude à execução quando o devedor diminui seu patrimônio, de forma a que este fique menor que o montante de suas dívidas (insolvência), já existindo ação judicial contra o devedor, em que ele já tenha sido devidamente citado.
Porém, não foi o observado no julgamento do recurso especial nº 1.141.990, no fim do ano passado. No caso, um contribuinte do Paraná vendeu uma motocicleta em outubro de 2005, três dias após ser citado em execução fiscal, portanto sem que houvesse penhora do bem no momento do negócio. Em 2007, a Justiça deferiu a penhora do bem, pois o vendedor já tinha ciência da ação, posto ter sido citado. O comprador, então, entrou com embargos de terceiro, alegando sua boa-fé, tendo sido atendido em primeira e segunda instâncias.
Mas o STJ, ao julgar o recurso especial referido, interposto pela Fazenda Nacional, reformou a decisão, considerando não ser aplicável a Súmula 375 ao caso, em face do preceituado no artigo 185 do Código Tributário Nacional: "Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução", posto haver interesse público envolvido e não se poder tratar a fraude fiscal como a fraude civil, em que há apenas o interesse privado em jogo.
Vejamos outro caso da Justiça do Trabalho. No início do mês de maio, acórdão do Tribunal Superior do Trabalho, em sede de agravo de instrumento em recurso de revista nº 139440-65.2004.5.03.0065, manteve a decisão de primeiro e segundo graus, que tinha anulado determinada venda de imóvel.
No caso, o proprietário de um imóvel firmou um contrato preliminar de compra e venda em 18 de fevereiro de 1999. O adquirente resolveu revender o imóvel para um terceiro, de forma que o registro no cartório de registro de imóveis tenha ocorrido tão somente em 18 de junho de 1999. Paralelamente, um empregado do proprietário original ajuizou reclamação trabalhista em 29 de abril de 1999, ação que se desenvolveu até chegar à fase de execução, quando o juiz de primeiro grau determinou a penhora do imóvel. O magistrado considerou que, como na data de ajuizamento da ação, em abril, o imóvel ainda estava em nome do proprietário, posto ter sido o registro de transferência realizado apenas em junho, o proprietário original, o empregador, incorreu em fraude à execução.
A decisão pautou-se no regramento do artigo 1245 de nosso Código Civil: "Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no registro de imóveis. Parágrafo 1º – Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel". Nosso direito pátrio filiou-se à tradição romana, reconhecendo o compromisso de compra e venda ou até a escritura pública como meros atribuidores de direitos sobre o imóvel, mas só considerando transmitida a propriedade com o registro do título. Diferentemente do direito francês, por exemplo, que estabelece o contrato como já transferidor da propriedade.
Nos exemplos acima, ainda que os proprietários dos bens tiveram a intenção de evitar o pagamento de seus débitos, não se pode afirmar que os adquirentes agiram de má-fé, pelo contrário.
O objetivo dessa análise não é questionar a importância do crédito fiscal, vital para o Estado atender às necessidades públicas, ou do crédito trabalhista, de natureza alimentar do empregado em face de seu empregador. A questão é analisar os limites para satisfação desses créditos diante de terceiros de boa-fé, dentro de um Estado democrático de direito.
Por ora, fica o alerta aos adquirentes de bens quanto à importância de se resguardar devidamente, quanto ao bem, quanto ao vendedor e também quanto aos proprietários anteriores, até o limite temporal dos prazos prescricionais.
Rodrigo Reis Bella Martinez é advogado da área empresarial do escritório Porto Lauand Advogados
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Fonte: Valor Econômico