“O trabalhador infantil de hoje será o desempregado de amanhã”, diz advogado
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Adolescentes são flagrados pelo iG trabalhando de forma ilegal em empreendimentos imobiliários de São Paulo. Constituição proíbe
Fernanda Simas, iG São Paulo
Começo da manhã, domingo ensolarado. Vitória, 15 anos, trança os cabelos enquanto tem uma placa em forma de seta pendurada no pescoço, apontando para o lançamento Sky House, na Vila Leopoldina, zona oeste da capital. Ela se anima quando a reportagem a aborda porque poderá conversar com alguém, mas fica sempre de olho no segurança que está por perto.
Jaque, 17 anos, usa um boné para se proteger do sol ao entregar folhetos do Vídeo Imóvel News em um semáforo da rua Heitor Penteado, bairro de Perdizes, também zona oeste. Quando o sinal abre para os veículos, ela vai até a calçada e pega um celular dentro da mochila para se distrair enquanto espera para a próxima leva de entregas.
Quase horário de almoço e Éric, 14 anos, carrega uma placa do lançamento Residencial La Tour Vila Formosa que é metade da sua altura na Praça 15 de Outubro, bairro Vila Carrão, zona leste de São Paulo. Com a mochila entre as pernas e o olhar entediante, ele se assusta quando alguém passa muito perto.
Passando por outras ruas das zonas leste e oeste, a reportagem do iG também encontrou Samantha, 13 anos, Talvize, 14 anos, Leandro, 15 anos, e Vanderson, 16 anos. As carinhas sempre cansadas, os olhos baixos e sonolentos, a mochila no chão e momentos de descanso ao se apoiarem em postes nas calçadas. Todos esses adolescentes trabalhavam quando deveriam estar brincando.
Por um dia de trabalho, eles recebem entre R$ 25,00 e R$50,00, alguns ganham almoço ou lanche e outros precisam levar o alimento de casa. "Eu fico aqui com a placa o dia todo, mas paro um pouco para almoçar. No final [do dia], ganho R$ 50,00 e o dinheiro do ônibus", conta, de forma tímida, a menina Talvize.
Esses não são casos isolados. No Brasil, mais de quatro milhões de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos trabalham, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de domicílios (PNAD) do IBGE, de outubro de 2010.
“O trabalhador infantil de hoje será o desempregado de amanhã. É fundamental investir na formação desses adolescentes até porque o mercado de trabalho está cada vez mais exigente e quanto mais eles puderem se preparar, mais terão condições de garantir um futuro adequado”, enfatiza o advogado e vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ariel de Castro Alves.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 21 anos no último dia 13, e a Constituição Federal proíbem o trabalho infantil no País. De acordo com a Constituição, apenas o adolescente a partir de 16 anos pode trabalhar, e sob condições estabelecidas. “Proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”, descreve o artigo 7°, 33 do documento.
O trabalho como aprendiz para adolescentes entre 14 e 16 anos também é ressaltado no Estatuto por meio do artigo 60 do capítulo 5: “É proibido qualquer trabalho a menores de 14 (quatorze) anos de idade, salvo na condição de aprendiz”. O item 2 do artigo 67 acrescenta que, também ao aprendiz, é vedado trabalho “perigoso, insalubre ou penoso.”
Mesmo com 21 anos de existência, o Estatuto da Criança e do Adolescente não é respeitado por todos e a realidade brasileira mostra crianças e adolescentes trabalhando como adultos para ajudar na renda familiar. Na cidade de São Paulo, o crescimento imobiliário gerou, entre janeiro e maio, 1,2 milhão de novos postos de trabalho formais, sendo que em maio 3.663 imóveis foram lançados, segundo pesquisa do Sindicato da Habitação do Estado de São Paulo (Secovi-SP).
Mas não são só os adultos que trabalham na área. Crianças e adolescentes atuam na divulgação de empreendimentos. Questionado como a maneira de ter conseguido o trabalho de carregar a placa de um lançamento imobiliário, o garoto Leandro explica que bastou ligar para o contratante e se apresentar. "Olha, você liga para esse número [mostra o telefone de quem o contratou] e aparece no dia, não precisa de documento não."
“Para [algumas] empresas é mais lucrativo contratar adolescentes do que adultos. O adolescente recebe pelo dia, estuda durante a semana e pode trabalhar aos finais de semana”, explica Alves. “É um tipo de função que requer só cuidar de placas e os jovens são mais ágeis para entregar folhetos”, acrescenta o advogado. Os adolescentes citados no início da matéria foram encontrados atuando justamente nessa área.
Respostas de contratantes
A incorporadora Kallas, responsável pelo empreendimento Sky House da Vila Leopoldina, onde trabalhava a menina Vitória, informou em nota que a contratação de mão de obra para divulgação dos empreendimentos é terceirizada e feita por uma agência de promoções cadastrada (não quiseram informar o nome da empresa). “A empresa averiguará o caso e tomará as medidas necessárias para coibir qualquer irregularidade”, conclui a nota.
No caso do empreendimento Residencial La Tour Vila Formosa, em que Éric carregava uma placa de divulgação, a construtora Goldfarb, do grupo PDG, informa que contratou a empresa Objetiva Promoções e Publicidade para fazer a divulgação e, ao descobrir que o menor trabalhava com a placa, quebrou o contrato com a empresa.
Em nota, A Objetiva informa que o caso de Éric foi isolado. “No inicio do trabalho, um fiscal passa em todos os pontos conferindo o RG dos promotores, sendo que não é permitido o trabalho de menores de 18 anos. Este foi um caso isolado.”
No caso da entrega de folhetos feita por Jaque, a diretora da empresa Vídeo Imóvel, Valéria Saad, explicou ao iG que contrata a empresa Eventos para fazer a contratação de mão de obra e que nunca soube de menores trabalhando com a entrega dos folhetos da empresa. Luiz Gustavo Damy, diretor de marketing da Eventos, explica que tem contrato com o Vídeo Imóvel e que terceiriza a contratação dos promotores.
“A EventosPPP terceiriza a contratação das promotoras através de coordenadores, todos PJ, que fornecem a mão de obra para ações de distribuição de jornais nos faróis de São Paulo. Esses empresas têm contrato assinado com a EventosPPP onde está firmado que as promotoras contratadas (de acordo com Estatuto da Criança e do Adolescente) devem ter entre 18 e 60 anos”, afirma Damy, em nota.
Com relação ao caso encontrado pelo iG, ele explica que a menina foi contratada pela empresa JB Eventos – uma das terceirizadas e que o responsável pela contratação costuma trabalhar com maiores de 18 anos. “Mas o seu volume [de contratados] é muito grande e com isso não é possível verificar minunciosamente todos os RGs na hora de distribuir as promotoras. Muitas dessas pessoas não têm como comprar comida e por isso às vezes utilizam documentos falsificados para conseguirem trabalhar”, acrescenta a nota.
“Essas atividades [carregar placas e entregar folhetos] são uma forma de exploração infantil. As incorporadoras ou imobiliárias têm obrigação de supervisionar as empresas que contratam [para contratar mão de obra para divulgação]”, afirma o advogado Ariel Alves. “As empresas terceirizam o serviço, mas são corresponsáveis. Existe até a previsão e crime pelo ECA por submeter a criança e o adolescente a vexame ou humilhação, ao atuarem como meninos placa, por exemplo”, acrescenta.
PEC
Uma Proposta de Emenda Constitucional tramita na Câmara dos Deputados e pede a redução da idade mínima para que uma pessoa possa firmar contrato de trabalho, de 16 para 14 anos. O autor da proposta, deputado Onofre Santo Agostini (DEM-SC) afirma que a PEC tem duas condicionantes. “Não será permitido o trabalho em local perigoso, insalubre e o adolescente precisa estar matriculado”. “Sou contra um menino trabalhar cortando cana, mas ele pode ser um office boy ou um auxiliar de escritório, com direitos trabalhistas”, acrescenta.
Ele considera que a nova lei vai regulamentar uma situação já existente que é o fato de o adolescente trabalhar para ajudar na renda familiar. “Nessa idade, o adolescente já quer sua roupa, quer ir ao cinema e o pai não tem condição de bancar. [A lei] vai ajudar na formação pessoal do jovem porque ele vai aprender a economizar, aprender o valor do dinheiro”, ressalta o deputado.
A opinião do vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da OAB, Ariel Alves, é contrária à PEC. “Nós somos contra até porque o adolescente pode estar atuando como aprendiz. O problema é que a grande maioria das empresas não emprega os aprendizes”, justifica Alves.
O advogado considera que uma criança ou um adolescente precisa se dedicar aos estudos e não pode arcar com a responsabilidade de um chefe de família. “Muitas vezes os pais estão desempregados e as crianças arcando com uma responsabilidade que elas não têm capacidade de arcar por estarem em fase de formação”. “Como aprendizes, eles [adolescentes] estarão se dedicando quatro horas por dia a um trabalho e tendo o tempo adequado para se dedicar aos estudos”, complementa Alves.
Ele acredita que as consequências da PEC, caso seja aprovada, ainda podem ser maiores. “Isso é uma forma de precarização do mercado de trabalho”, diz, levando em conta que os adolescentes, mesmo com carteira de trabalho assinada, não terão os mesmo direitos trabalhistas de uma pessoa com mais experiência. “Uma pessoa que está a mais tempo em uma empresa pode ser demitida para que um adolescente seja contratado, por um custo mais baixo. Essa lei pode favorecer esse tipo de situação, gerando uma crise dos empregos”, enfatiza.
Padrões internacionais
“A idade mínima que o Brasil adotou para a inserção no mercado de trabalho é baseada nos padrões internacionais e envolve uma análise econômica da conjuntura nacional”, explica Ariel Alves. O Brasil adotou as normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) desde os anos 1990, condenando o trabalho infantil e adotando políticas públicas que visassem a sua erradicação, de acordo com o Programa Internacional para Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC), implementado em 1992.
Questionado sobre os jovens entre 16 e 18 anos que já têm permissão para trabalhar e atuam segurando placas de lançamentos imobiliários, Alves é taxativo. “Existe um decreto federal que não permite que adolescentes [menores de 18 anos] trabalhem nessas situações porque são consideradas insalubres”.
Ele se refere ao Decreto 6.481, assinado em junho de 2008, regulamentando artigos da Convenção 182 da OIT, que trata da proibição de formas de trabalho descritas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil, denominada Lista TIP.
O artigo 2° do Decreto assegura que o menor de dezoito anos não pode trabalhar com as atividades descritas na Lista TIP, sendo que o item 81 sobre os Trabalhos Prejudiciais à Saúde e à Segurança abrange o trabalho “ao ar livre, sem proteção adequada contra exposição à radiação solar, chuva, frio” e o item 4 sobre Trabalhos Prejudiciais à Moralidade abrange o trabalho “com exposição a abusos físicos, psicológicos ou sexuais.”