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O Prazo de Decadência Decenal e os Lançamentos por Presunção e vias Reflexas

Publicado em:

Antonio Airton Ferreira

1. Apresentação do problema

Por força das decisões da Câmara Superior de Recursos Fiscais, a exemplo do Acórdão CSRF/01-04.838, de 16.02.2004 (DOU 16/08/2005), aparentemente estava pacificado no âmbito administrativo federal a questão correspondente ao prazo para emissão dos lançamentos de ofício no tocante às denominadas contribuições para a Seguridade Social. O Acórdão destacado concluiu que, relativamente à Contribuição Social sobre o Lucro, por ter natureza tributária, o prazo para lançamento é de 5 (cinco) anos, em conformidade com os prazos fixados pelo Código Tributário Nacional.

Com a nova composição das Câmaras do Conselho de Contribuintes, existe a possibilidade desse entendimento ser alterado para admitir o prazo de 10 (dez) anos fixado pelo artigo 45, da Lei nº 8.212/91, sob o argumento central de que o Tribunal Administrativo não pode negar vigência a dispositivo de lei.

Se isto acontecer será um retrocesso, marcado pela prevalência absoluta do formalismo jurídico. Principalmente porque não mais se discute que decadência é matéria de reserva de Lei Complementar, em consonância com o comando constitucional instituído pelo, inciso III, alínea “b”, da Constituição de 1988. Na ausência de Lei Complementar própria, essa função é reservada ao Código Tributário Nacional recepcionado com tal hierarquia. Neste contexto, é possível afirmar que o confronto entre a Lei da Previdência, uma lei ordinária, e o CTN, materialmente uma lei complementar, deve ser resolvido no âmbito da legalidade e não no campo da constitucionalidade. Admitido esse enquadramento, não haveria obstáculo real para a continuidade do controle da legalidade que vinha sendo exercido pela Câmara Superior de Recursos Fiscais.

O presente trabalho não pretende insistir na tese da prevalência do CTN nessa matéria, que certamente será desenvolvida com maior rigor por outros profissionais. A preocupação agora é bem mais restritiva, abrangendo apenas os lançamentos centrados em presunção legal e as exigências fiscais reflexas ou decorrentes das apurações ultimadas para a emissão do auto de infração no imposto de renda.

No que tange à escrituração contábil, as seguintes indagações justificam esse esforço: é possível reabrir, retroativamente, a escrituração contábil num espaço de 10 (dez) anos? Como o contribuinte poderia enfrentar a acusação nascida desse levantamento retroativo, se os documentos contábeis não mais existem? Será que o prazo de decadência estabelecido para o Imposto de Renda, o único que exige escrituração contábil, não veda essa recomposição contábil tardia? Será que o prazo de 10 (dez) anos não alcançaria apenas a escrituração fiscal correspondente às receitas e nunca os valores levantados numa forçada recomposição contábil?

Voltando-se o foco para os lançamentos apoiados exclusivamente nas presunções legais, indaga-se se é possível exigir do autuado a produção da prova de fatos acontecidos há mais de 5 (cinco) anos?

2. Os lançamentos centrados em presunção legal

É raro encontrar um lançamento de ofício estribado numa prova direta produzida pelo Fisco. Normalmente, os autos de infração têm suporte na chamada prova indireta, representada pela presunção comum formada pela soma dos indícios convergentes.

A presunção se insere no campo da prova, entendida esta como o ato de demonstrar que ocorreu ou deixou de ocorrer determinado evento (1). Assim diz-se que a presunção representa uma prova indireta, partindo-se de ocorrências de fatos secundários, fatos indiciários, que apontam para o fato principal, necessariamente desconhecido, mas relacionado diretamente ao fato conhecido.

Noutro artigo publicado nesse espaço (2), destacamos as precisas lições do mestre Alfredo Augusto Becker a respeito desse procedimento probatório:

“A observação do acontecer dos fatos segundo a ordem natural das coisas, permite que se estabeleça uma correlação natural entre a existência do fato conhecido e a probabilidade de existência do fato desconhecido. A correlação natural entre a existência de dois fatos é substituída pela correlação lógica. Basta o conhecimento da existência de um daqueles fatos para deduzir-se a existência do outro fato cuja existência efetiva se desconhece, porém tem-se como provável em virtude daquela correlação natural.”

Estabelecidos seus pressupostos, o mestre Becker esculpiu a definição de presunção, nestes precisos termos (3):

“Presunção é o resultado do processo lógico mediante o qual do fato conhecido cuja existência é certa se infere o fato desconhecido cuja existência é provável.”

Esse, também, é o entendimento do mestre Leonardo Sperb de Paola (4):

“Numa acepção bastante ampla, costuma-se dizer que a presunção dissipa dúvidas sobre a realidade, optando por aquilo que, embora não seja certo, é provável. Estabelece, a partir de uma correlação natural (observa-se, na experiência cotidiana, que determinados eventos estão, em regra, ligados a outros), uma correlação lógica (da prática, passa-se à formulação de um juízo, que, quando for aplicado, dispensará nova observação da realidade).”

Como anteriormente ressaltado, é muito raro haver lançamento apoiado em prova direta; normalmente, os autos de infração centram-se em presunção comum, que é formada pela soma dos indícios convergentes. Na formação dessa prova, contudo, todo o encargo probatório é de responsabilidade do Fisco.

A situação é muito diferente quando se tem uma presunção legal! Deveras, depois que uma presunção comum é ratificada pela experiência, dela surge a denominada presunção legal, na qual ao fato indiciário (fato conhecido) é legalmente correlacionado o fato tributado (desconhecido). Um exemplo ajuda no entendimento: provada a ausência do registro dos pagamentos (fato indiciário), presume-se a existência de omissão de receitas (desconhecido).

É indiscutível que a presunção legal é uma técnica desenvolvida pelo direito que facilita sobremaneira o trabalho do Fisco. Por essa técnica, há uma espécie de divisão do encargo probatório entre o Fisco e o contribuinte. O primeiro deve provar a existência apenas do fato indiciário; o segundo, desconstituir a presunção legal mediante a apresentação de provas plenas. Para tanto, o contribuinte deve reunir diversos indícios em direção contrária ao fato indiciário, ou ainda, questionar a razoabilidade da relação jurídica de implicação (5).

Para ilidir a referida presunção, o contribuinte deve reunir vários elementos que normalmente são estribados em documentos, dados contábeis, dados pessoais e até de terceiros. Assim, afigura-se evidente que a produção dessa prova só pode ser exigida numa situação que se revele factível, sob pena de ter-se a exigência da produção de prova impossível. É neste ponto, portanto, que surge a inviabilidade dos lançamentos centrados em presunção legal e a pretendida decadência dos 10 (dez) anos.

Deveras, as presunções legais, para usar uma linguagem mais direta, têm como marca própria a transferência do encargo probatório para o contribuinte. Ora, como o contribuinte poderá levantar essa prova se os documentos, se os dados contábeis próprios, e até de terceiros, não mais estão disponíveis porque a regra geral de guarda dessa documentação é de 5 (cinco) anos, como definido para a imposto de renda? Não tem sentido exigir do contribuinte a produção de uma prova que, antecipadamente, já se sabe impossível.

Dessa forma, sem que isto represente admissão da validade do art. 45 da Lei nº 8.212/91, fica evidenciado ser incompatível o prazo de 10 (dez) anos nos lançamentos centrados em presunção legal, ainda que restritos às contribuições para a Seguridade Social, nos quais, em sua maior parcela, o encargo probatório é transferido ao contribuinte, visto que nenhuma norma pode operar no campo da impossibilidade fática ou jurídica.

3. Incompatibilidade com as denominadas exigências reflexas

De uma fiscalização desenvolvida no âmbito do imposto de renda, com apuração direta ou indireta de omissão de receita, surgem as denominadas exigências reflexas ou decorrentes, com autos de infração de COFINS, PIS e CSLL. Quanto à apuração indireta, a discussão girará em torno das presunções, já examinada no item anterior. Na apuração direta da omissão de receita, os elementos probatórios são levantados na fiscalização do imposto de renda; no tocante às exigências reflexas, portanto, não há elementos probatórios próprios.

Segundo dispõe o § 1º, do art. 9º do Decreto nº 70.235/72, com a redação dada pelo art. 113 da Lei nº 11.196/05, quando a comprovação dos ilícitos depender dos mesmos elementos de prova, será formado um único processo com os autos de infração formalizados em relação ao mesmo sujeito passivo. Na redação primitiva, na parte inicial do referido parágrafo, constava a expressão “apuração dos fatos”. A redação atual é mais precisa no sentido de marcar que todas as exigências fiscais devem estar centradas nos mesmos elementos de prova, dispensando a apuração individualizada dos fatos.

Na realidade, nessas exigências reflexas, como já observado, os elementos de prova pertencem à fiscalização do imposto de renda. Por uma questão de economia procedimental, seus efeitos é que são estendidos aos demais lançamentos de ofício, tidos como decorrentes, ou nascidos por vias reflexas.

No tocante ao imposto de renda, indiscutivelmente, o Fisco têm 5 (cinco) anos para ter acesso aos dados contábeis e demais documentos. Atualmente, como regra, a contagem desse prazo dá-se no âmbito do denominado lançamento por homologação, na forma regulada pelo § 4º, do art. 150, do CTN, com o termo inicial centrado na data da ocorrência do fato gerador. Na apuração anual, em 31 de dezembro; na tributação trimestral, no encerramento de cada trimestre.

Diante de comprovada ocorrência de dolo, fraude ou simulação, a decadência será apurada pela regra do art. 173 do CTN, com o termo inicial, em regra, marcado para o início do exercício seguinte. No tocante às apurações trimestrais, o “exercício seguinte” referido no art. 173 coincidirá com o início do próximo ano – e não no seguinte -, visto que em cada trimestre ocorre um fato gerador, o que libera o Fisco para agir já no próximo trimestre.

Seja como for, no tocante ao imposto de renda, o prazo de decadência é regulado pelo CTN. Bem, como ficam então as exigências reflexas da COFINS e da CSLL, para as quais a regra de decadência pretendida é de 10 (dez) anos, no rigor do art. 45 da Lei nº 8.212/91? O PIS deve ficar fora dessa polêmica porque, diferentemente da COFINS e da CSLL, não é destinado ao financiamento da Seguridade Social; é dirigido ao financiamento do seguro desemprego (art. 239 da CF).

Há dois prazos de decadência? Haveria um para lançamento do imposto de renda e outro para a COFINS e a CSLL, se todas as exigências estão estribadas nos mesmos elementos de prova, que foram levantados na fiscalização do imposto de renda? Parece contraditório! E realmente é contraditório! Para evitar esse absurdo, deve prevalecer a regra de decadência aplicada ao imposto de renda. Se não for assim, o prazo decadencial da exigência principal, que vincula as demais, será suplantado pela regra especial de decadência das contribuições sociais. Ora, se as exigências reflexas, por expressa autorização da lei processual (art. 9º, do Decreto 70.235/72), podem ser estribadas nos elementos de prova colhidos na auditoria do imposto de renda, dispensando até a apuração dos fatos correspondentes a tais exigências, a extensão dos efeitos dos elementos únicos de prova deve ser para todos os fins, alcançando, assim, inclusive o prazo de decadência para a formação desses elementos. Numa frase: a vinculação entre esses lançamentos deve ser total. Mesmo porque se for emitido auto de infração do imposto de renda, respeitando-se o prazo de decadência do CTN, e autos de infração decorrentes da COFINS e CSLL, no prazo de decadência do art. 45 da Lei nº 8.212/91, a defesa do contribuinte no tocante às exigências reflexas revela-se quase impossível, uma vez o prazo para guarda da documentação contábil é definido pela regra de decadência do imposto de renda.

Em resumo, se o art. 45 da Lei nº 8.212/91 passar pelo crivo da legalidade (confronto com o CTN), hipótese admitida apenas para argumentar, é lícito concluir que, também, os lançamentos decorrentes da fiscalização do imposto de renda não podem ser estribados no prazo decadencial dos 10 (dez) anos da lei da Previdência Social.

Aliás, no final, fica a impressão que na definição do prazo de decadência dada pela lei da Previdência Social levou-se em conta as características das contribuições vinculadas à folha de salários, que são radicalmente distintas da COFINS e principalmente da CSLL, que tem como materialidade de incidência o lucro líquido ajustado.

4. Das conclusões

Diante de todas as considerações precedentes, é possível sumariar as seguintes conclusões:

a) decadência é matéria reservada à Lei Complementar, consoante estabelece o art. 146, III, “b”, da Constituição Federal;

b) assim sendo, no tocante às contribuições para a Seguridade Social, devem prevalecer os prazos de decadência regulados pelo Código Tributário Nacional, que, por haver sido recepcionado como lei complementar, supre a ausência de lei específica regulando essa matéria;

c) dessa forma, a disciplina estabelecida pelo art. 45 da Lei nº 8.212/91, marcando o prazo de 10 (dez) anos para expedição de lançamentos no tocante às contribuições para a seguridade social, representa uma invasão à esfera própria da Lei Complementar;

d) o crivo sobre essas leis dá-se no campo da legalidade e não da constitucionalidade, pois a questão envolve embate hierárquico entre leis de diferentes escalões;

e) entretanto, se o art. 45 da Lei nº 8.212/91, passar pelo crivo da legalidade, esse dispositivo não pode regular os lançamentos centrados em presunção legal, visto que nestes casos o maior encargo probatório é transferido para o contribuinte, que pode ver-se na contingência de produzir prova impossível, já que não há obrigatoriedade da guarda da documentação contábil e fiscal pelo prazo de 10 (dez) anos ;

f) igualmente, esse dispositivo não pode regular o prazo de decadência das exigências ditas reflexas, que são centradas nos mesmos elementos de prova da exigência principal, visto que a extensão dos efeitos desses elementos deve ser ampla, assegurando para todas as exigências a regra de decadência da exigência principal, na qual tais elementos foram levantados.

Notas

(1) Maria Rita Ferragut, Presunções no Direito Tributário, Dialética, p.45

(2) Os Depósitos Bancários de Pessoas Físicas Como Base Para a Presunção Legal de Omissão de Rendimentos

(3) Teoria Geral do Direito Tributário , Lejus, p. 508

(4) Presunções e Ficções no Direito Tributário, Del Rey, pp. 58/59

(5) Maria Rita Ferragut, obra citada, pp. 71/72.