O Conselho de Contribuintes sem julgadores contribuintes
Publicado em:
Walter Carlos C. Henrique
A última moda no contencioso administrativo tributário é a limitação de atuação dos julgadores indicados pelas entidades representativas dos contribuintes. Quem inovou foi o Ministério da Fazenda e a Secretaria de Finanças do Município de São Paulo apenas seguiu. Interessante como as distorções se propagam rapidamente, e mais interessante, é que estes órgãos ainda se consideram justos.
A idéia de Justiça pode ser atrelada a duas representações: a grega vinculada à Deusa Diké, filha de Zeus e Themis, de olhos bem abertos; e a romana simbolizada pela Deusa Justitia, que tinha os olhos vendados. Em ambos os casos, há o equilíbrio entre os pratos, "ison" de onde surgiu a expressão isonomia (gregos) e "rectum" (direito) para os romanos.
É verdade que não se pode esperar (e não se deve) Justiça fiscal de funcionários executivos que somente são treinados para agir com vinculação à lei. Mesmo porque nenhum órgão fazendário do país caracteriza-se pelas mesmas garantias constitucionais somente asseguradas ao Poder Judiciário. Eis a beleza do sistema de "cheks and balances".
Contudo, nosso legislador constituinte inspirado na importância da cláusula do devido processo legal e talvez antevendo a impossibilidade de ser distribuída Justiça em tempo a todos, resolveu assegurar aos litigantes e acusados tanto na esfera administrativa quanto judicial o direito ao devido processo legal, incluindo-se o direito a recursos. "Due processo of law" não pode ser reduzido a uma fórmula objetiva praticamente numérica, lógica. Nada mais inapropriado. A origem da expressão no Reino Unido visava conter o arbítrio da realeza e quando evoluiu em solo estadunidense servia de ferramental para conter abusos do executivo, logo se incorporando como garantia no Judiciário. Se temos uma cláusula constitucional cravada no artigo 5º de forma imutável, propagando efeitos tanto aos órgãos do Executivo quanto do Judiciário, a moda acima é insustentável.
A pretensão contida no novo regimento interno do Conselhos de Contribuintes agrega garantia de prejuízo
Os tribunais administrativos não podem abrir mão da composição paritária e, consequentemente, das inclinações inerentes à proveniência de seus julgadores, porque essa é a única forma de impor condições igualitárias à solução dos conflitos que lhes são apresentados. No caso dos órgãos administrativos de julgamento não se pode incorporar limitações vinculadas a outras experiências e realidades, uma vez que isso não implicaria automática anulação das convicções incorporadas, a bem da função pública, pelo treinamento e experiência profissional à alma dos representantes do fisco.
Não é possível assegurar-se aos órgãos de julgamento administrativo qualquer decisão vinculada ao devido processo legal, sem que as soluções não decorram do fiel que não mais se simboliza por pratos em posição reta, igualitária, mas por julgadores de formações antagônicas, que somente poderão expedir decisões em função do equilíbrio de posições, formações e convicções.
A conseqüência desta inconstitucional moda serve de ótimo instrumento jurídico para os contribuintes sem razão, porque a nulidade formal da apreciação de seus argumentos implicará nulidade na produção do ato de inscrição em dívida ativa, atacável facilmente pelo Poder Judiciário. Não é a primeira vez que a sede arrecadatória implica prejuízos aos cofres públicos. Isso já se deu com a imposição de limitações através dos chamados depósitos prévios, e agora se aperfeiçoará com a nulidade das decisões administrativas expedidas por estes órgãos. Interesse público não se aperfeiçoa apenas com o interesse arrecadatório que não se justifica em si mesmo, mas com o respeito a todos os vetores consagrados pela Constituição da República Federativa do Brasil. Não é a toa que a virtude sempre está no meio. Eis porque uma limitação que vulnera o equilíbrio, impede o devido processo legal e vilipendia seus resultados.
A pretensão contida tanto no novo regimento interno dos Conselhos de Contribuintes, quanto no decreto que vincula o Conselho Municipal de Tributos de São Paulo, a bem da verdade, agrega garantia de prejuízo e não de qualidade. Inconstitucionalidade gritante por ofensa ao artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal.
Walter Carlos Cardoso Henrique é advogado, presidente da comissão especial de assuntos tributários da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) e professor de direito tributário da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo
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