O cancro social da sonegação tributária
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Fabrício Da Soller
Na excelente obra "D. Pedro II", de José Murilo de Carvalho, este, ao narrar o envolvimento do biografado com a abolição da escravatura, iniciando com o episódio da aprovação da Lei do Ventre Livre, conta-nos que o nosso imperador encomendara ao senador Pimenta Bueno, o grande constitucionalista do império, que redigisse projetos de lei abolicionistas. Nas discussões públicas que se seguiram, liberais, conservadores e republicanos atacaram com vigor o projeto do então visconde de São Vicente, acusando-o de ir de encontro aos mais elevados interesses nacionais. Ilustra o historiador mineiro: "o jornal A República combateu o projeto por ser de iniciativa imperial e não das câmaras; fora elaborada nas trevas do palácio, à revelia da nação. Voltaram também as acusações de despotismo dirigidas ao Poder Moderador. A se dar crédito às posições dos críticos, inclusive republicanos, o abolicionismo era o despotismo, o escravismo era a democracia".
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O cancro social da escravidão já nos deixou há mais de um século. Não podemos dizer o mesmo da sonegação tributária, que tem acompanhado todos os passos do nosso país. Por mais chocante que possa parecer aos mais sensíveis, não é desarrazoado traçarmos um paralelo entre o descompasso das classes dirigentes de então, em face do esforço abolicionista proveniente do Palácio de São Cristóvão, com a repulsa que medidas que visam combater a sonegação recebem de certos setores da atual sociedade organizada. Lamentavelmente, sempre que o Poder Executivo buscou dotar o fisco de instrumentos para identificar e punir os sonegadores, submetendo ao Poder Legislativo projetos de lei nesse sentido, a reação de vários segmentos da sociedade brasileira tem sido similar ao narrado no parágrafo anterior: o combate à sonegação dotado de instrumentos eficazes é o despotismo, a ampla e irrestrita liberdade para sonegar ou evitar a fiscalização é a democracia.
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Vejamos a Lei Complementar (LC) nº 105, de 2001, que no artigo 5º estabelece que "o Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços." Publicada em 10 de janeiro de 2001, no mesmo mês já havia duas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas, alegando que o acesso do fisco a tais informações constituiria um atentado à intimidade das pessoas.
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Interessante constatar que a tão atacada Instrução Normativa (IN) da Receita Federal do Brasil nº 802, de 2007, não inova em nada a estrutura da regulamentação já existente. O Decreto nº 4.489, de 2002, é que disciplinou o quanto previsto no artigo 5º da LC nº 105. A IN apenas alterou a periodicidade da prestação das informações pelas instituições financeiras (de mensal para semestral), conforme permitido pelo inciso II do artigo 5º do mencionado decreto. Mesmo os limites das pessoas físicas e jurídicas em R$ 5 mil e R$ 10 mil respectivamente, já estavam estabelecidos no artigo 4º do decreto.
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A tão atacada IN nº 802, de 2007, não inova em nada a estrutura da regulamentação já existente |
Se há algo de inconstitucional nisso tudo, e acreditamos firmemente que não, é o artigo 5º da LC nº 105. Jamais a IN nº 802, que apenas estabeleceu diferente periodicidade para a prestação de informações, conforme facultado pelo próprio Decreto nº 4.489, de 2002.
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No fundo, a recente comoção tem fundamento no fim da cobrança da CPMF, que trazia como obrigação acessória a prestação de semelhantes informações.
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Agora, bem lá no fundo, mais do que a proteção da intimidade, que não é em nada estiolada pelo fisco, eis que este não terá conhecimento da natureza dos gastos ou dos créditos, mas apenas do montante envolvido, o que está subjacente a essa discussão com ares de elevado debate jurídico é o pequeno desvelo que a nossa sociedade tem pelo combate à sonegação. Paradoxalmente, essa proteção ao sonegador em nada contribui para que o fisco possa arrecadar com mais eficiência de um número maior de contribuintes, o que permitiria a redução do montante cobrado de cada um.
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Fabrício Da Soller é procurador-geral adjunto da Fazenda Nacional |
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