Nova lei sobre CSLL não esvazia decisão transitada
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Por Fernanda Donnabella Camano de Souza
Em junho passado, a questão sobre a perpetuação, no tempo, da coisa julgada em matéria tributária veio mais uma vez à tona por meio de audiência pública promovida pelo Centro de Altos Estudos (CEAE) da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, cujo objetivo foi o debate do tema “A cessação dos efeitos da coisa julgada em face de superveniente decisão do STF em matéria tributária”.
Contudo, tal discussão não é nova. Assim é porque em 1994, a Procuradoria da Fazenda Nacional editou o Parecer 1.277, por meio do qual afirmou que tanto a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal declarando constitucional a Lei 7.689/1988 (exceto para o ano-base de 1988), quanto as alterações legislativas subsequentes, seriam capazes de paralisar os efeitos da coisa julgada para o futuro.
Noutros termos, referido parecer minimizou os efeitos da decisão definitiva advogando a ideia, tão debatida atualmente, da relativização da coisa julgada, que encontra apoio nas vozes de diversos processualistas, especialmente em razão da introdução do parágrafo único ao artigo 741 do Código de Processo Civil em 2005[1], que trouxe a regra no sentido de que o título executivo judicial pode ser desconstituído por meio de embargos, caso haja decisão do Supremo Tribunal Federal em sentido diverso ao que lhe deu origem, independentemente do prazo de dois anos para a propositura da ação rescisória.
Portanto, este trabalho não tem por escopo analisar com profundidade a polaridade doutrinária sobre a relativização da coisa julgada, mas sim defender este instituto quando o contribuinte vence a demanda judicial com o Fisco para se ver desobrigado de recolher a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido mas, por argumentos diversos, exigi-se dele o mesmo tributo nos períodos subsequentes ao trânsito em julgado, em total desrespeito ao que restou decidido pelo Poder Judiciário.
Além de analisar a questão sob a ótica do direito positivo, ainda que em breves linhas, investigaremos a evolução da jurisprudência emanada pelo Superior Tribunal de Justiça[2], para concluir que subsiste hígida a decisão passada em julgado no futuro.
É o que se passará a expor.
Os limites objetivos da coisa julgada
O fenômeno da coisa julgada no Direito positivo brasileiro encontra-se previsto no inciso XXXVI do artigo 5º da Carta de 1988, nos seguintes moldes: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;”
Logo de início, vê-se que a coisa julgada constitui um fenômeno a outorgar estabilidade às situações jurídicas colocadas sob seu manto, o que quer dizer que, mesmo diante da dinâmica das interações humanas e da contínua produção de preceitos jurídicos, a situação já decidida pelo Poder Judiciário ganha a chancela da segurança necessária à sustentação do Estado Democrático de Direito.
De outra parte, o Código de Processo Civil outorga contorno ao instituto, conforme se verifica do artigo 467[3] e seguintes.
Assim é que, quando a decisão proferida pelo órgão Judicial não se apresenta mais passível de impugnação via recursos ordinário ou extraordinário, como alude o Estatuto Processual — tornando-se indiscutível estabiliza-se o conteúdo da decisão prolatada, não podendo mais a questão antes controvertida e submetida ao crivo do Poder Judiciário ser novamente suscitada pelas partes.
Lourival Vilanova pondera que, “desde que a sentença terminativa do processo de cognição adquira o grau de coisa julgada, os efeitos processuais incidem na relação de direito material. (…) Impede-se a relação material de percorrer, outra vez, o caminho da cognição jurisdicional, pois sobre ela já se pronunciou, por último e com definitividade, o órgão Julgador. Deu-se-lhe a segurança de ser a pretensão exigível, a necessidade normativa de seu cumprimento.”[4] Ora, se as partes, mesmo diante do Poder Judiciário, não se encontram autorizadas a rediscutir a situação jurídica objeto de decisão anterior, muito menos poderão, por si mesmas, questionar o conteúdo e a respectiva sujeição ao comando sentencial, ainda que aleguem a introdução de novo preceito na ordem jurídica, que venha a “prejudicar” o que foi decidido.
Uma vez passada em julgado determinada decisão, dispõe o artigo 468 do Código de Processo Civil que esta tem força de “lei entre as partes” nos limites da lide e das questões decididas, somente podendo ser alvo de impugnação, pelo sistema processual civil brasileiro, por intermédio da Ação Rescisória (e nas hipóteses veiculadas nos incisos do artigo 485 do Código de Processo Civil, observado o biênio preclusivo).
Ao prescrever que a decisão que julga a lide tem “força de lei” nos limites do que acerca dela (lide) se decide, fixando — positivamente — o que da decisão transita em julgado, o artigo 468 do Código Processual Civil deve ser interpretado em consonância ao artigo 469 caput e seus incisos, que diferentemente traz o que não transita em julgado, nos seguintes termos:
“Não fazem coisa julgada:
I — os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; (…)”
Contudo, impõe-se uma advertência absolutamente necessária. Muito embora se verifique que o raciocínio que leva o Julgador a decidir a lide não seja coberto pela definitividade, a interpretação construída a partir do artigo 468, complementado pelo 469 e incisos do Codex processual, deve ser capaz de outorgar aplicabilidade ao fenômeno, sob pena de se tornar inútil, não alcançando o escopo de garantir estabilidade à situação litigiosa já definida pelo Poder Judiciário. E o que isto significa?
Pode ocorrer que, se nos ativermos tão somente ao dispositivo da sentença, sem nos atentarmos aos fundamentos de decidir do órgão Julgador (na medida em que, por serem motivos, não se consideram elementos componentes do dispositivo), aquele poderá tornar-se ininteligível em termos de qual deve ser o comando a ser obedecido pelas partes.
Noutro giro, o dispositivo contido na decisão pode ser mais bem compreendido à luz dos fatos e dos fundamentos jurídicos deduzidos pelo autor, bem como à luz dos motivos exarados pelo órgão judicial (muito embora estes não estejam alocados geograficamente na parte dispositiva da decisão).
Nessa linha, aponta Enrico Tullio Liebman, cujas lições se mostram oportunas:
“A questão dos limites objetivos da coisa julgada é uma das mais controvertidas no direito brasileiro. Resolveu-a, na verdade, há muito tempo e de modo insuperável, Paula Batista (…) quando afirmou que ‘a autoridade da coisa julgada é restrita à parte dispositiva do julgamento e aos pontos aí decididos e fielmente compreendidos em relação aos seus motivos objetivos’. Significa isso que os motivos da sentença não são objeto da coisa julgada, mas devem ser considerados para entender o verdadeiro e cabal alcance da decisão.”[5]
No mesmo sentido, podemos compreender o posicionamento adotado pelo ministro Luiz Fux, em voto proferido em outubro de 2008 (REsp 875.635/MG[6]):
“Destarte, conquanto seja de sabença que o que faz coisa julgada material é o dispositivo da sentença, faz-se mister ressaltar que o pedido e a causa de pedir, tal qual expressos na petição inicial e adotados na fundamentação do decisum, integram a res judicata, uma vez que atuam como delimitadores do conteúdo e da extensão da parte dispositiva da sentença.”
Isso posto, verifique-se a evolução das decisões emanadas pelo Superior Tribunal de Justiça relativamente aos limites da coisa julgada em matéria tributária, especialmente no que concerne à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.
Da evolução da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
Inicialmente, o Superior Tribunal de Justiça, por suas duas Turmas de Direito Público, possuía entendimento no sentido de que, como a declaração incidental de inconstitucionalidade da Lei 7.689/1988 não integrava o dispositivo da decisão passada em julgado, não haveria que se falar em inconstitucionalidade para o futuro capaz de fulminar a cobrança para além do período em que proferida a decisão transitado em julgado (um por todos, REsp 599.764/GO[7]).
Chegando à mesma conclusão, mas sob outro fundamento, foram prolatados julgados por meio dos quais a Corte Especial não acolhia o pleito dos contribuintes de extensão no tempo da decisão definitiva, pelo argumento de que, quando foi exarada, o Poder Judiciário havia apenas analisado a legislação vigente à época da discussão, de forma que ocorrendo a mera alteração do quadro fático ou normativo (sem se aprofundar no que consistiria tal alteração), a coisa julgada se tornava sem efeitos a partir de então (AgRg no REsp 703.526/MG[8]).
Assim, os julgados acabavam por aplicar de forma indistinta o verbete da Súmula 239 do Supremo Tribunal Federal cuja redação é “Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores.”
Tais decisões datam de 2003 a 2005.
Contudo, ao analisar o REsp 731.250/PE[9] (em abril 2007), a ministra Eliana Calmon chamou a atenção para a real extensão daquele verbete indicando que os limites no tempo dos efeitos da coisa julgada dependerão de duas verificações: (i) quais são os fatos e os fundamentos jurídicos trazidos pela parte à luz do decisum transitado em julgado, bem como (ii) qual o conteúdo das modificações normativas supervenientes à lei objeto de análise pelo Judiciário para saber se, em face delas, perdurará ou não para o futuro a decisão definitiva.
Ou seja, a ministra Eliana Calmon partiu da premissa de que é imperioso analisar, caso a caso, o que foi pedido e decidido e, em seguida, realizar o cotejo com o conteúdo da legislação superveniente. Veja-se trecho da ementa e do voto proferidos em sede do REsp 1.095.373/SP[10], em que fica evidente a necessidade de uma análise mais acurada no que diz respeito ao tema: “3. A superveniência de nova legislação dispondo sobre a relação jurídica objeto de anterior mandado de segurança pelo qual se afastou as disposições do decreto revogado pode atingir ou não o impetrante, tudo a depender dos limites do pedido e do comando judicial prolatado, bem como do teor das alterações legislativas ocorridas. VOTO: Ora, se à época da impetração vigia o Decreto 41.653/97 e o acórdão, apreciando a legislação de regência, entendeu pela invalidade do diploma infralegal, resta interpretar os decretos supervenientes para aferir se houve modificação relevante na legislação regulamentar, hábil a mitigar a eficácia da coisa julgada. Como realçado no precedente acima, somente as modificações legislativas de relevo têm eficácia para desnaturar a coisa julgada…”
Assim sendo, e aplicando tal premissa para decidir os casos postos ao seu crivo, a ministra Eliana Calmon enfrenta, por meio do REsp 731.250/PE, a discussão no sentido de saber se as modificações perpetradas à legislação instituidora da CSLL (Lei 7.689/1988) foram bastantes em si para paralisar os efeitos da coisa julgada formada nos autos de ação declaratória ajuizada por contribuinte.
Inicialmente, como dito, a ministra afasta a aplicação indistinta do verbete sumular 239 do Supremo Tribunal Federal invocando trecho do voto do então ministro Rafael Mayer[11] que delimitou o seu conteúdo:
“‘(…) Mas se a decisão se coloca no plano da relação de direito tributário material para dizer inexistente a pretensão fiscal do sujeito ativo, por inexistência de fonte legal da relação jurídica que obrigue o sujeito passivo, então não é possível renovar a cada exercício o lançamento e a cobrança do tributo, pois não há precedente vinculação substancial. A coisa julgada que daí decorre é inatingível, e novas relações jurídico-tributárias só poderiam advir da mudança dos termos da relação pelo advento de uma norma jurídica nova com as suas novas condicionantes.’”
Como consequência, a ministra circunscreve a causa de pedir posta na ação declaratória afirmando que a decisão acolheu o pedido sob o fundamento, além de vícios de índole formal (necessidade de edição de lei complementar), também por vícios materiais, atingindo o núcleo da hipótese de incidência, ou seja, o critério material da norma instituidora da CSLL (sem que tenha havido qualquer restrição do pedido a determinado exercício). Assim, dentre outras alegações, entendeu que tal contribuição não poderia ter o mesmo fato gerador (base de cálculo) do Imposto sobre a Renda, incorrendo na vedação do artigo 154, inciso I, da Constituição.
Prossegue a ministra efetuando o cotejo das leis modificativas da Lei 7.689/1988 com a decisão transitada em julgado, advertindo que aquelas apenas alteraram alguns aspectos da norma de incidência da CSLL, chegando à conclusão que a relação jurídica formada sob o bojo da novel legislação permanecia exatamente a mesma daquela objeto da decisão definitiva.
Conclui, portanto, que a coisa julgada permanecia hígida nos seus exatos termos porque foi fulminado o critério material da hipótese de incidência da CSLL e, também, porque as alterações supervenientes tão somente alteraram a alíquota e trouxeram novas adições/exclusões da base de cálculo do tributo mantendo, contudo, o mesmo núcleo material da regra então fulminado.
Tal decisão, inicialmente proferida pela 2ª Turma da Corte Superior, foi chancelada pela 1ª Seção do mesmo Tribunal, por meio dos Embargos de Divergência opostos pela Fazenda Nacional em sede daquele REsp 731.250/PE (assentada de maio de 2008), os quais foram rejeitados.
Veja-se trecho do voto do relator dos Embargos de Divergência mencionados, ministro José Delgado: “No entanto, no caso em apreciação, como antes demonstrado, o acórdão embargado está amparado em fundamento diverso, no sentido de que, para além da mera alteração de expressões nas diferentes legislações que regularam a CSLL, ou mesmo das alíquotas praticadas, não houve real mutação dos critérios, pressupostos e condições que já haviam sido objeto de expressa declaração de inconstitucionalidade.”
Por fim, os autos do processo foram remetidos ao Supremo Tribunal Federal, por força de recurso extraordinário interposto pela Fazenda Nacional em face da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça. E, na Suprema Corte, o RE 597.678 teve negado seguimento pelo ministro Joaquim Barbosa, por defeito processual, muito embora o ministro tenha encampado a tese da manutenção da coisa julgada para o futuro, transitando em julgado aos 9 de dezembro de 2010.
Do exposto, verifica-se que foram ultrapassados aqueles singelos argumentos então adotados de que uma vez que a motivação não integra o dispositivo, não haveria que se aplicar os efeitos da coisa julgada para o futuro, bem como de que bastaria a mera alteração legislativa para infirmar a coisa julgada.
E, chancelando tal entendimento, a mesma 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça analisou o AgRg no REsp 839.049/MG[12], em maio de 2009, cuja relatoria foi a do ministro Mauro Campbell (que não integrou aquele julgamento da 1ª Seção), aduzindo que após o julgamento da 1ª Seção houve alteração do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que passou a conceber que a novel legislação, nestas situações, manteria intactos os efeitos da coisa julgada. Desta decisão, foram opostos Embargos de Divergência pela Fazenda Nacional, indeferidos liminarmente por decisão monocrática proferida 8 de junho passado.
Não obstante a evolução da jurisprudência da Corte Superior, em decisão de relatoria do ministro Teori Zavascki (REsp 742.413/MG[13]), prolatada em novembro de 2008, este pontuou o tema dos efeitos prospectivos da coisa julgada, mas concluiu de forma diversa do que foi decidido pela 1ª Seção na assentada de maio de 2008.
No referido julgado, o ministro discorreu que, via de regra, a decisão passado em julgado colhe as situações submetidas à época ao Judiciário, ou seja, se refere àquele suporte normativo então existente e à determinada situação concreta a ele submetida. Tanto assim que deve ser aplicada a cláusula rebus sic standibus nessa situação, o que equivale a afirmar que a decisão produz efeitos enquanto não alterado o quadro normativo que compõe o silogismo da sentença.
Em continuação, chama a atenção no sentido de que, nas relações jurídicas de trato sucessivo, uma vez decidida determinada relação jurídica que se perpetua no tempo e tendo a sentença se pronunciado a respeito desta situação, a decisão definitiva colhe os eventos vindouros, até que sejam alterados o direito e o suporte fático de sua aplicação. Apoia seus argumentos em obra extensa elaborada por S. Exa. intitulada “Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional”, São Paulo: Ed. RT, 2001.
A posição do ministro se afigura mais restrita do que a defendida no julgamento da 1ª Seção, na medida em que da leitura de trecho de seu voto fica claro o raciocínio de que a mera alteração da regra posta à apreciação do Judiciário, sem que tal alteração se traduza em “de relevo”, substancial, como aludiu a ministra Eliana Calmon, teria o condão de descaracterizar a coisa julgada, especialmente em razão da presença da cláusula rebus sic standibus, até mesmo na interpretação da sentença prolatada diante de relações jurídicas de trato sucessivo.
Verifique-se trecho de seu voto:
“(…)
Discute-se, no especial, apenas qual teria sido o momento em que teria ocorrido dita alteração normativa. Segundo a recorrente, foi com a edição da LC 70/91, sendo irrelevantes as Leis 7.856/89, 8.034/90 e 8.212/91… O acórdão do TRF, porém, decidiu que as alterações promovidas por esses diplomas legais não estão compreendidos na decisão transitada em julgado, sendo válida a exigência da contribuição já após o advento do primeiro deles.
Tem razão o acórdão, portanto, ao fixar no advento da Lei 7.856, em 24.10.1989, o termo ad quem da eficácia da decisão transitada em julgado. Os preceitos normativos citados, supervenientes ao trânsito em julgado, não foram, nem poderiam ter sido, apreciados por aquela decisão. A alteração do quadro normativo, assim, fez cessar a eficácia vinculante daquele julgado.”
Em síntese, nesse julgado ficou decidido que se a regra nova — seja de que natureza for — não estiver compreendida pela decisão judicial passada em julgado, é o que basta para que os efeitos prospectivos da coisa julgada cessem.
E, na conclusão, diverge daquela adotada no julgado proferido pela 1ª Seção, ao apreciar a evolução das normas modificativas editadas à Lei 7.689/1988 afirmando que, porque o novo quadro normativo não foi objeto do decisum transitado em julgado, não poderia ter sido por ele alcançado. Portanto, compreendeu pela paralisação dos efeitos da sentença para o futuro.
Votaram com S. Exa. os ministros então integrantes da 1ª Turma, ou seja, os ministros Denise Arruda, Benedito Gonçalves, Francisco Falcão e Luiz Fux, acompanhando-o à unanimidade. Não consta terem sido opostos Embargos de Divergência pelo contribuinte, transitando o acórdão em julgado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
Assim, verifica-se que paira insegurança jurídica por parte do Poder Judiciário, na medida em que, muito embora tenha havido decisão da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que as alterações posteriores à Lei 7.689/1988 não foram capazes de paralisar os efeitos da coisa julgada no que tange às relações jurídicas de trato sucessivo, quando fulminado o critério material da hipótese de incidência da CSLL, a 1ª Turma proferiu decisão em sentido diametralmente oposto.
Para aclarar a posição de cada um dos ministros em face da questão, verifique-se o quadro a seguir:
Precedente da 1ª Seção favorável aos contribuintes (28/05/2008) – Emb.Div. em REsp 731.250/PE |
Precedente da 1ª Turma desfavorável (18/11/2008) – REsp 742.413/MG | Atual Composição da 1ª Seção do STJ |
José Delgado (relator) | —— | —— |
Eliana Calmon | —— | —— |
Teori Zavascki | Teori Zavascki (relator) | Teori Zavascki |
Castro Meira | —— | Castro Meira |
Denise Arruda | Denise Arruda | —— |
Humberto Martins | —— | Humberto Martins |
Herman Benjamin | —— | Herman Benjamin |
Carlos Mathias (Juiz Convocado) | —— | —— |
—— | Benedito Gonçalves | Benedito Gonçalves |
—— | Francisco Falcão | —— |
—— | Luiz Fux | Luiz Fux |
—— | —— | Hamilton Carvalhido[14] |
—— | —— | Mauro Campbell[15] |
—— | —— | Arnaldo Esteves Lima |
—— | —— | Cesar Asfor Rocha |
Da análise da atual composição da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, não é possível vislumbrar qual será o desfecho da nova apreciação do tema pela Corte. Isto porque, pelo histórico analisado, há cinco ministros, do total de dez, votando no sentido de que a legislação superveniente não poderia alcançar as relações jurídicas continuativas para o fim de obrigar o contribuinte a pagar a CSLL, dado que o que se fulminou foi o critério material da hipótese de incidência da contribuição.
E, registre-se que tal matéria será novamente objeto de análise pela Corte Superior, por sua 1ª Seção, na medida em que foi determinado o processamento do RESP 1.118.893/MG sob a sistemática do artigo 543-C do Código de Processo Civil (recursos repetitivos), isto é, trata-se de caso representativo desta controvérsia.
Da declaração de inexistência de relação jurídica entre o contribuinte e o fisco, concernente ao recolhimento da CSLL (Lei 7.689/1999)
Diversos contribuintes, no passado, ajuizaram ação declaratória em face da União para o fim de obter provimento jurisdicional no sentido de declarar a inexistência de relação jurídica entre as partes no que concerne à exigência da CSLL (Lei 7.689/1988). Na maioria dos casos discorriam, em síntese, que a exigência perpetrada pela Lei instituidora da contribuição seria inconstitucional, por incorrer na vedação contida no artigo 154, inciso I, da Constituição, em razão de eleger o mesmo fato gerador do Imposto sobre a Renda (ainda que houvesse lei complementar), dentre outros argumentos.
Em muitos casos foi proferida sentença julgando procedentes os pedidos, nos termos requeridos.
Ora, como advertiu o mestre português João de Castro Mendes[16], apoiado nas lições de Savigny, da simples leitura (isolada) do dispositivo não se pode saber com exatidão qual o comando da decisão, sua extensão etc. Tais dados são fornecidos a partir da leitura dos fatos (empresa X “aufere lucro” e deve pagar a CSLL à União) e da causa de pedir (a Lei 7.689/1988 é inconstitucional seja no âmbito formal, seja materialmente por violação a diversos preceitos constitucionais), em conjunto à motivação do decisum.
Assim, analisando as razões de decidir à luz dos fatos e dos fundamentos jurídicos dos pedidos formulados pelos contribuintes, o que se observa é que, em muitos casos, os juízes sentenciantes acolhiam os pleitos com fundamento no vício material contido na norma instituidora da CSLL, em razão de o fato gerador ser idêntico ao do Imposto sobre a Renda, ainda que houvesse lei complementar para regular a contribuição, dentre outros motivos.
Em síntese, desnaturou-se o núcleo da hipótese de incidência no sentido de que a CSLL, conquanto tenha idêntico fato gerador do Imposto sobre a Renda, não poderia subsistir, a par de outros argumentos de índole formal.
Pergunta-se: quais são os fatos narrados na inicial? Na maioria dos casos, o fato de o contribuinte X “auferir lucro”, fato gerador da incidência tributária. E os fundamentos jurídicos? A Lei 7.689/1988 apresenta determinados vícios ao Texto Constitucional. E o pedido? Requer-se a declaração de inexistência de relação jurídica entre o Fisco e o contribuinte que obrigue este último a recolher a CSLL.
Via de regra, os juízes federais, ao analisar a Lei 7.689/1988 e os vícios apontados pelos contribuintes ao Texto Constitucional, entendiam que tal norma seria inconstitucional, fulminando o critério material da regra matriz de incidência. E, em conclusão, julgavam procedentes os pedidos, nos termos em que requeridos.
Tais decisões acabavam sendo confirmadas pelos Tribunais (em sede de apelação da Fazenda/remessa oficial) e, após o regular trâmite nos Tribunais Superiores (quando tal fato ocorria), não eram modificadas, vindo a transitar em julgado.
A par do argumento de que os motivos não transitam em julgado, por certo dão o contorno e o entendimento do contido no dispositivo, sempre à luz da causa de pedir e do pedido postos pelo autor do processo.
Assim, se foi fulminado o critério material da hipótese de incidência do tributo porque havia ilegítima identidade com aquele estabelecido para o Imposto sobre a Renda, dentre outras considerações, o fato é que enquanto não houver alteração de relevo – como aduziu a ministra Eliana Calmon – não poderá haver a cobrança atinente às relações jurídicas continuativas – já que não houve restrição de exercícios no pedido.
Isto significa que, muito embora haja modificações na alíquota e na base de cálculo da contribuição, enquanto o fato material colhido pela norma de incidência for “auferir lucro”, o tributo não pode ser cobrado para aqueles contemplados por decisão judicial que o fulminou.
Diferentemente seria se o Poder Judiciário tivesse afastado a cobrança pela necessidade de edição de lei complementar. Desta forma, poder-se-ia sustentar que bastava o Poder Legislativo corrigir o vício para que nova cobrança pudesse ser efetuada, porque aí sim ter-se-ia alteração de destaque sem malferimento à coisa julgada.
Nesse sentido, até desnecessário seria a invocação do artigo 471 do Código de Processo Civil e, muito menos, a propositura de rescisória, pois bastaria a edição da lei complementar para que o Fisco pudesse aplicar a nova norma.
Portanto, enquanto subsistir no ordenamento jurídico a norma da CSLL, cujo aspecto material da hipótese de incidência é “auferir lucro” e, tendo a decisão transitado em julgado, sem restrição de tempo, fulminado tal critério, não há como as autoridades fazendárias ex officio efetuarem a cobrança do tributo, uma vez que há lei entre as partes vedando a aplicação daquela norma jurídica. Ora, caso tivesse sido declarada a constitucionalidade da cobrança, a ação deveria ser renovada em cada exercício? Por óbvio, a resposta é negativa. Destaque-se, inclusive, o artigo 156, inciso X, do Código Tributário Nacional, que determina ser causa extintiva do crédito tributário a decisão passada em julgado.
Assim, uma vez não tendo sido proposta a Ação Rescisória no biênio preclusivo, tais contribuintes têm o direito de não recolher a CSLL para os períodos futuros, i.e., sem restrições no tempo e para além dos limites da decisão passada em julgado.
[1] A Lei 11.232/2005 conferiu a redação ao parágrafo único do artigo 741 e ao artigo 475-L, parágrafo 1º do Código de Processo Civil. E, a Medida Provisória 2.180-35, conferiu redação semelhante ao parágrafo 5º do artigo 884 da Consolidação das Leis do Trabalho.
[2] Prestigiaremos, neste estudo, as decisões do Superior Tribunal de Justiça, que atualmente tem proferido manifestações diversas sobre o tema, ao passo que a Suprema Corte, diferentemente, tem se posicionado pela ocorrência de violação reflexa ao Texto Constitucional (RE 581.107/MG, Rel. ministro Dias Toffoli, DJE – 027, publicado em 12/02/2010; RE 445.343/GO, Rel. ministro Joaquim Barbosa, DJE – 237, publicado em 18/12/2009). Sobre tema semelhante, identificamos, perante a Suprema Corte, os Recursos Extraordinários 586.068/RG e 590.880/CE, ambos versando sobre a possibilidade do título executivo judicial ser impugnado quando a lei ou o ato normativo que lhe deu suporte forem declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal (conforme parágrafo único do artigo 741 e parágrafo 1º do artigo 475-L, do Código de Processo Civil, e parágrafo 5º do artigo 884 da Consolidação das Leis do Trabalho). Além disso, a mesma questão vem sendo enfrentada por meio das ADIs 2.418 e 3.740.
[3] “Artigo 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”
[4] Causalidade e Relação no Direito. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 208-209
[5] Eficácia e Autoridade da Sentença e Outros Escritos sobre a Coisa Julgada (com aditamentos relativos ao direito brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 55.
[6] STJ REsp 875635/MG, Rel. ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 16/10/2008, DJe 03/11/2008.
[7] STJ REsp 599764/GO, Rel. ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 08/06/2004, DJ 01/07/2004 p. 185.
[8] STJ AgRg no REsp 703526/MG, Rel. ministro Francisco Falcão, Rel. p/ Acórdão ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 02/08/2005, DJ 19/09/2005 p. 209.
[9] STJ REsp 731250/PE, Rel. ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 17/04/2007, DJ 30/04/2007 p. 301.
[10] STJ REsp 1095373/SP, Rel. ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 23/06/2009, DJe 04/08/2009.
[11] STF RE 93.048/SP, Relator: Min. Rafael Mayer, Primeira Turma, julgado em 16/06/1981, DJ 14-08- 1981, p.17716.
[12] STJ AgRg no REsp 839049/MG, Rel. ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 12/05/2009, DJe 27/05/2009.
[13] STJ REsp 742413/MG, Rel. ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 18/11/2008, DJe 24/11/2008.
[14] O ministro em questão proferiu decisão monocrática favorável aos contribuintes nos autos do Emb.Div. em RESP 839.049/MG.
[15] Tal ministro proferiu voto favorável aos contribuintes no AgRg. no RESP 839.049/MG.
[16] Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil. Lisboa: Ática, 1968, p. 101 e 103