“Não temos sistema, só um amontoado de tributos”
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Por Fabiana Schiavon
Antes de partir para um congresso na Universidade de Roma para falar sobre tributação e risco nos projetos de parceria público-privada, o professor de Direito Tributário da USP, Heleno Torres, concedeu uma entrevista à revista Consultor Jurídico. Para o professor, além do equilíbrio na carga tributária, é preciso também garantir um esforço conjunto de estados e municípios para tirar do papel os grandes projetos de infraestrutura que possam fazer diferença no desenvolvimento do país.
Na entrevista, Heleno Torres fala também da urgência de se promover uma reforma tributária que não se baseie em reduzir ou agregar tributos, mas em criar coerência entre os impostos criados para que o contribuinte saiba exatamente o que vai ter de pagar e como fará isso. Segundo Torres, a carga tributária brasileira, comparativamente com a de outros países no estágio de desenvolvimento do Brasil, é equilibrada. O problema é que ela não é uniforme. “Nós temos hoje um amontoado de tributos que não falam entre si.”
Sobre a reforma possível, Torres defende que a grande mudança só pode vir com a reforma do imposto sobre a renda. “É preciso acomodar a estrutura do imposto às novas realidades das empresas. A legislação sobre o Imposto de Renda é absolutamente caótica, dispersa.” Para Torres, a mudança não deve ocorrer no sentido apenas de estimular o pequeno empresário. O estímulo tem que levar os empreendedores a criar empresas que já possam dar lucros altos em seu primeiro ano. “Se quisermos estimular o empreendedorismo brasileiro temos de garantir que a nova empresa possa ser grande.”
O professor defende também que a reforma dê um novo tratamento para o ICMS, que, na sua opinião, é o tributo que mais prejudica as relações econômicas do Brasil, já que atinge toda a circulação de mercadorias, os serviços de telecomunicações, de transportes e combustíveis.
A burocracia tributária é outro motivo de descontentamento do professor. A gestão desses processos leva 5% do faturamento da empresa e, mesmo com esse encargo, o contribuinte não tem a contra partida do bom atendimento.
Formado pela Faculdade de Direito de Recife, Heleno Taveira Torres foi tenente do Exército e tentou ser juiz federal. Em 1992, ele foi um dos 10 bolsistas escolhidos pelo Ministério do Exterior da Itália entre estudantes de toda a América Latina. Sua tese, que relacionava o Direito Romano aos conceitos do Direito Tributário, foi escolhida em primeiro lugar. De volta da Itália, Torres chegou a prestar concurso para juiz federal.Foi aprovado entre os 37 dos mais de 3 mil convocados. Uma suspensão judicial das provas, por três anos, o forçou a decidir pela vida acadêmica e partir para o doutorado. De 1996 até 2004, quando abriu o escritório de advocacia, Torres se dedicou integralmente à vida universitária.
Os jornalistas Alessandro Cristo e Geiza Martins participaram da entrevista.
Leia a entrevista
ConJur – Qual a sua missão no congresso da Universidade de Roma?
Heleno Torres –Vou falar sobre as relações tributárias e riscos na relação público-privada. É muito difícil quando você tem constituições compartilhadas, não somente envolvendo questões de parceria público-provada, mas também a responsabilidade dos setores diante das relações tributárias. Se essas questões não forem bem equacionadas comprometem o projeto que deve ser de partilha de esforços. O Estado tem a força dos impostos. Assim, o que deveria ser uma partilha, pode ser prejudicial ao particular, porque a longo prazo, pela modificação de regimes tributários ocorre o desequilíbrio do contrato, dos custos, dos riscos. É preciso considerar também como fica a segurança jurídica das empresas que assumem compromissos nesses projetos de infraestrutura.
ConJur — Aqui no Brasil tem algum exemplo de desequilíbrio?
Heleno Torres — Nós ainda temos poucas obras de parceria no setor público-privado e essas poucas obras estão baseadas em pedágio. Temos projetos de hospitais, que são entidades filantrópicas e têm imunidade tributária. Mas esses casos ainda não estão em execução, porque é impossível que o Estado construa um hospital que tenha uma parte de atendimento particular por plano de saúde e outra de atendimento de SUS. Já a construção de portos e aeroportos tem a discussão se se deve abrir ou não o acesso dos particulares a esses setores. Se abrir, vai ser preciso convocar os particulares para assumir com o Estado o compromisso de juntos empreenderem uma grande obra. Nós precisaremos dessas obras em virtude da Copa do Mundo, pois nós não temos infraestrutura. Quem é que vai criar a rede ferroviária entre Rio de Janeiro e São Paulo se não for o setor público junto com o particular? Se a empresa começa a operar e o sistema tributário não funciona para essa empresa, evidentemente que a médio prazo gera um desequilíbrio nas relações econômicas. Claro que a tributação do lucro é mais razoável. Agora, tributação de faturamento, ou pelo ISS ou pelo ICMS, desequilibra as relações.
ConJur — Isso obrigaria a fazer uma revisão na Lei de Parcerias Público-Privadas?
Heleno Torres — Não, a Lei de PPP, por ser lei ordinária, não teria condições de enveredar por questões particulares da cúpula da legislação federal. Isso depende de um grande acordo do federalismo, porque os grandes temas de infraestrutura não são exclusivos da União. São competências que têm de ser reconhecidas e compartilhadas com estados e municípios. Por exemplo, quando se amplia uma rede ferroviária para o transporte de pessoas entre Rio de Janeiro e São Paulo, naturalmente você está estimulando o comércio, está estimulando uma série de coisas que antes não havia.
ConJur — Esse problema não se reflete no próprio contrato?
Heleno Torres — A insegurança Jurídica no Brasil é avassaladora e também afeta as relações de contratos e licitações. Imagina uma empresa de boa-fé, promovendo um contrato desses, olhando para o custo da obra. Ela vai levar em conta várias questões tributárias, mas nisso não estão uma série de repercussões que vão desde a cobrança indevida de tributos até as diferenças de interpretaçãoque fazem da legislação o Estado e o contribuinte. Aí começa o contencioso, onde a imprevisibilidade é muito grande. O contribuinte muitas vezes entende que não incide imposto sobre a operação. Ele vai fazendo as operações e, daqui a pouco, vem o fisco e diz que ele apurou errado ao longo dos anos. No ano passado, eu estive com o doutor Jorge Gerdau [presidente do grupo Gerdau]. Ele disse que no Canadá sabe-se exatamente qual será a repercussão tributária ao final do ano ou de dois anos das operações que ele realiza. No Brasil, ele não consegue ter essa previsão sequer de um mês. Quais os insumos que são tributáveis? Nem a receita sabe porque varia com tanta intensidade a classificação do que é insumo que você fica dependente de uma série de fatores, da sensibilidade do fiscal, por exemplo.
ConJur — Há uma explicação para tanta variação?
Heleno Torres — É difícil dizer. A insegurança jurídica no Brasil é muito grande. Os nossos tributos podem ser muitos, mas não é a quantidade que importa. O que importa é ter um sistema tributário que funcione como sistema. Quando a Constituição trata do sistema tributário nacional, ela não está determinando um simples agregado de tributos, mas exigindo que aquilo tenha uma certa coerência. Nós temos hoje um amontoado de tributos que não falam entre si. A grande reforma tributária hoje é a Reforma do imposto sobre a renda. Houve diversas adaptações às regras internacionais, como a que mudou a Lei 6.404 [Lei das S.A.], mas o que isso refletiu na matéria tributária? Elas são regras de mero ajuste. Todos os países da Europa reformaram suas leis de Imposto de Renda porque sabem da necessidade de acomodar a estrutura do imposto às novas realidades das empresas. A legislação do imposto sobre a renda brasileira é absolutamente caótica.
ConJur —Garantir uma tributação menor no primeiro ano das empresas seria uma solução para incentivar os investimentos?
Heleno Torres — Sim. Não se deve tributar os dois primeiros anos e deixar claro ao contribuinte que ele terá alguns compromissos, como um plano de investimentos para que a partir do terceiro ano faça uma distribuição de lucros. Nessa hora, a empresa robustece, cria mais emprego e mais oportunidade de negócios. Tem de ter uma fase de adaptação do empreendedorismo, mas a nova empresa não precisa necessariamente começar pequena, de lucro presumido e depois pular. Ela pode começar no lucro real, mas é preciso que isso funcione como sistema. E que as leis dos tributos falem entre si. Essa é a grande Reforma Tributária que nos falta.
ConJur — É preciso uniformizar as alíquotas?
Heleno Torres — O presidente da República, no final do ano passado, fez um discurso no Rio de Janeiro pedindoque os empresários ficassem tranquilos porque a carga tributária não iria baixar. É possível manter a carga tributária em 36%? Eu diria que sim, pois ela não é tão absurda. O problema são os desequilíbrios desta carga tributária. A carga tributária brasileira, comparativamente com a de outros países no estágio de desenvolvimento do Brasil, é razoável. O problema é que ela não é uniforme. Os 36% não são lineares para todo mundo. A maioria das empresas estão com tributos acima de 50%. Mas tem contribuintes com carga tributária muito inferior a isso, muitas vezes pela própria situação deles, micro, pequenas empresas, o que é normal, tem que ser diferenciada mesmo. O que não é normal é que no universo da tributação ordinária, haja contribuintes com níveis acima de 50%, 70%. É exatamente aqui que é preciso fazer a grande Reforma Tributária da legislação para garantir maior isonomia. Parece um pouco utópico isso.
ConJur — Qual a melhor forma de garantir o estímulo ao setor produtivo? Heleno Torres — A forma de estimular o setor produtivo não é dar isenção fiscal, mas garantir a desoneração dos meios de produção. É inaceitável tributar bens de capital, que vão servir para produção que, por sua vez vão gerar empregos de um lado e impostos do outro. Isso é tudo que o Estado precisa: emprego para garantir o bem-estar social e para que as pessoas paguem impostos; e impostos com a venda e o dinamismo das empresas. Por isso, o Estado é o grande sócio da empresa. Se nós quisermos crescer, desenvolver o país, o sistema tributário tem que ser revisto não na Constituição, mas nas leis que vão estruturá-lo. O que é uma tributação do setor produtivo? Ora, é uma tributação que esteja pautada com foco na produção, com foco na comercialização e, portanto, nos signos presuntivos de capacidade contributiva. Não me parece que um sujeito faça uma demonstração de capacidade contributiva ao adquirir uma máquina. O bem de capital é so um instrumento para gerar capacidade contributiva.
ConJur – Qual é a reforma possível?
Helene Torres – Como dizia o professor Souto Borges, “a história tributária do Brasil é a história de uma reforma tributária permanente”. Termina uma reforma tributária, já estamos a pensar em outra. Se ela satisfaz o interesse do contribuinte, o Estado já começa pensar em propor um novo modelo. Se ela satisfaz mais o interesse do Estado, o contribuinte diz que a reforma não serviu e que tem que fazer outra. Eu diria que é possível aprovar uma reforma tributária que garanta a uniformidade da legislação do ICMS. Só que o Congresso não quer fazer isso a troco de nada. Aí começam as grandes demandas, e muda aqui, muda ali e infelizmente isso torna a reformaimpossível, no espaço político. O centro da reforma tributária que se deseja é a segurança jurídica da certeza do direito do ICMS: que a legislação do ICMS do Acre seja exatamente a mesma de Pernambuco ou de São Paulo, para que o direito de crédito dado a um estado seja respeitado pelo outro. Ponto.
ConJur — Como é o ISS, por exemplo?
Heleno Torres – Como deveria ser desde a reforma de 65, que não foi respeitada na Lei Kandir. O que se espera é que haja uma legislação uniforme do Oiapoque ao Chuí. Essa é a reforma tributária possível, que se deveria aprovar o quanto antes, pois a falta dela está atrasando o país. O ICMS é o imposto que traz maior gravidade às relações econômicas do Brasil. O ICMS na forma como se encontra hoje atinge todas as operações de circulação de mercadorias e os serviços de telecomunicações transportes e combustíveis. Não tem nada que circule sem pagar o ICMS. Só que tem estados pobres, como o Acre, em que o ICMS de telecomunicação é de 45%. É muito grave a situação, pois é muito diferente de outros estados. Você pode trabalhar com alíquotas diferentes, mas nãode formaexorbitante.
ConJur — E qual a reforma que tem chance de passar?
Heleno Torres — Ao longo das modificações dos processos de reforma tributária vimos que elas foram deixando a cada momento a sua contribuição. Agora precisaríamos de uma revisão centrada na questão do ICMS, não mais que isso. Tem uma série de regras de tributação ambiental que pode ser interessante também reformar. Eu estimulo muito os estudos de Direito tributário ambiental no Brasil, embora a tributação ambiental dependa muito pouco da Constituição.
ConJur — O que poderia ser aproveitado na área ambiental?
Heleno Torres — Houve um debate muito longo sobre a figura do poluidor pagador, mas agora ninguém mais fala disso. Você já pensou se tivéssemos constitucionalizado essa novidade? Precisamos ter muito cuidado, pois certos modismos levados às últimas circunstâncias podem se tornar instrumentos para justificar tributação superposta, introdução de tributos. Na tributação ambiental, muito mais importante que o poluidor pagador é o estímulo a quem não polui ou a quem protege a natureza. A figura do protetor garante que as pessoas tenham práticas além do mínimo. Por exemplo, uma série de municípios do interior tem políticas de proteção de nascentes de rios. Os proprietários daquelas terras, que poderiam destinar a água para plantar hortaliças ou para o gado beber, recebem para deixar as prefeituras cercarem a área e protegeram a nascente. Posso dizer que esse valor não é baixo.
ConJur – Voltando à reforma: o IPI foi reduzido para incentivar o consumo. O senhor acha que o IPI deveria ser excluído na Reforma Tributária?
Heleno Torres – Não tem tributo que seja mais impactante na renda das pessoas do que o tributo do consumo. Você tem IPI, ICMS, ISS sem falar do imposto de importação e do IOF. Esse grupo de tributos está no mundo, está consolidado. Em qualquer operação, eles geram crédito. É possível extinguir o IPI, contanto que os outros sejam consolidados. Então, se um empresário toma um serviço, ele abate do geral. No Brasil, esses créditos não se abatem entre si, e aí vêm os problemas chamados de “acúmulos de crédito”. O mesmo se dá com essas ações, você dá isenção do IPI, mas o benefício não se transfere para o ICMS. Não adianta nada você dar a redução do IPI ou o PIS/Cofins se o ICMS continua aplicado a 17%, 25%. Então, acabemos logo com toda estrutura de tributos não cumulativos. Consolidemos tudo isso num tributo não cumulativo, que gere crédito em todas as operações e com isso eliminamos os resíduos de impostos nas cadeias produtivas, o que é absolutamente sensacional do ponto de vista da arrecadação tributária.
ConJur— Como é possível equacionar esses impostos?
Heleno Torres – Recentemente, nós fizemos um trabalho em que o setor de produção de carne bovina tentou equacionar a carga tributária ao longo da cadeia e resolver um outro problema que é a informalidade. Nesse segmento, 90% é informal. Quando você coloca todo mundo na formalidade, o que acontece?Eles pagam IRPJ, CSLL ou outros tributos. Então, apesar de eliminar o PIS/Cofins e IPI ao longo da cadeia, você tem, ao mesmo tempo, o benefício de receber, no valor acumulado, agregados de toda a cadeia na operação final. A grande atitude é você compreender o setor e adaptar a tributação à realidade desse setor.
ConJur — Como o governo faz a escolha de quem terá isenção ou redução tributária?
Heleno Torres — Essa escolha é política, sem qualquer razão técnica. Se fosse reduzido o IPI em geral, com redução de 1% ou 0,5%, o impacto negativo seria mínimo, mas não geraria uma bandeira política relevante. O efeito é psicológico. Estimular venda de carro, a maioria em São Paulo, para piorar o trânsito? O governo ganha politicamente um grande trunfo com isso. Só que na prática, no geral, isso só agrava as diferenças dentro dos setores. E tem setores que estão em extrema dificuldade.
ConJur — Teria de ser então uniforme para todos os setores?
Heleno Torres — Para garantir um privilégio é preciso comprovar que só aquele setor estava sujeito à crise. O que não é verdade. Todos os setores foram afetados com a crise. Então, ou bem se reduz o imposto para todos os setores e garante uma tributação equilibrada, ou bem você reconhece o incentivo, mas num período muito curto. Aredução do IPI foi um êxito e aí foram mantendo esse incentivo. Só que quando alguns setores começaram a brigar resolveu-se dar a isenção ao setor de eletrodoméstico, depois ao de móveis. Não é assim. Isso é a pior política pública possível.
ConJur — Como lidar com a burocracia tributária?
Heleno Torres — O empresário tem medo de investir, principalmente pela carga tributária e pela desordem das obrigações acessórias, que muitas vezes, são mais caras que os próprios tributos. A gestão da burocracia tributária consome, dizem os analistas da parte econômica, em torno de 5% do faturamento da empresa. Aparentemente, para pagar um imposto não basta preencher a declaração do imposto. Tem também o atendimento da fiscalização. O mais grave é que não é uma relação de boa-fé entre a Administração Pública e o contribuinte. O atendimento mais célere do grande contribuinte gara maior arrecadação, evita dúvidas de aplicação errônea da legislação e que aquilo gere multas.
ConJur — Os contribuintes acabam arcando com o custo de administrar seus próprios dados, já que a administração não dá conta de orientá-lo?
Heleno Torres — Sim. Procure saber quanto é que custa um programa de gestão de nota fiscal eletrônica. Mas o programa não funciona sozinho. É preciso contratar advogados altamente qualificados, escritórios especializados para acompanhar o dia a dia. Quando você soma esse custo, ele é exorbitante pela dificuldade da integração e a insegurança jurídica quanto à incerteza do direito. O contribuinte tem de confiar no fisco e o fisco tem que confiar no contribuinte. Como é que se cria um estado de confiança? Gerando instrumentos que se o contribuinte atende a esses requisitos, o Estado tem o compromisso de lealdade.
ConJur — Que pontos devem ser simplificados para reduzir os litígios decorrentes da burocracia tributária?
Heleno Torres — O litígio tributário surge da dificuldade de interpretação de uma legislação difícil e da dificuldade de acesso do contribuinte à Administração. A burocracia tributária brasileira precisa passar por uma revisão também. A nota fiscal eletrônica não pode servir somente de instrumento de pressão e opressão sobre o contribuinte, mas que traga celeridade na obtenção de certidões negativas ou positivas com efeito negativo, que o contribuinte possa ter uma certa mobilidade na forma de pagamento dos tributos, com critérios de agilidade. Que ele não precise fazer uma demonstração de números, de todos os documentos da empresa quando ele precisa pedir um benefício fiscal, se ele atendeu a todos os requisitos de notas fiscais, etc.
ConJur — Qual o papel do Conselho dos contribuintes do Ministério da Fazenda?
Heleno Torres — O conselho é a grande instância tributária, e todos nós, tanto o fisco quanto os contribuintes temos que prestigiar os conselhos: Conselho de Contribuintes, Tribunal de Impostos e Taxas, porque todos são instâncias administrativas especializadas. O juiz, por mais especializado que seja, não necessariamente tem a mesma dinâmica de um conselho. Por isso, a importância da jurisprudência do conselho é garantir a certeza do Direito.
ConJur — A limitação do Conselho de Contribuintes para analisar questão constitucional atrapalha essa dinâmica?
Heleno Torres — Dada a falta de segurança jurídica na legislação em determinado período, os contribuintes passaram a imaginar que quanto mais constitucionalizada for a matéria tributária, maior será a segurança jurídica. Essa percepção é falsa. Fiz um levantamento recente, com alunos da USP, em 42 constituições nacionais. Nós encontramos no mundo constituições analíticas, como a da Índia, mais parecidas com a do Brasil. E encontramos outras que só fazem referência ao princípio da legalidade ou igualdade em matéria tributária, mas com poucas regras explícitas. Ao olhar a prática desses países, estranhamente, constatamos que aqueles de maior constitucionalização são geralmente os países onde existe maior índice de insegurança jurídica. É como se fosse uma tentativa de conter a insegurança pela constitucionalização das leis. Por isso que eu disse que a grande Reforma Tributária não está na Constituição está no fazer uma revisão da legislação ordinária, legislação do processo. Faltam no Brasil estadistas do Direito Tributário.
ConJur — Quem tem essa visão hoje?
Heleno Torres – Na doutrina nós temos pessoas com essa visão de estadista. Você tem Paulo de Barros, o Eros Grau, Luis Inacio Adams. Quando falo de estadista do sistema tributário é um que não se prenda apenas à Constituição. Você tem de pensar no Estado. O que queremos dele em relação à melhoria. Por exemplo, as pessoas criticam o programa do Fernando Henrique e do Lula de gasto público para reduzir as diferenças sociais. Eu não entro nesse tipo de debate. Temos de ter essa política de recuperação num país miserável. Agora, não podemos fazer política Robin Hood, tirar do rico para dar para o pobre sem ter um programa maior de Estado de como vamos crescer todos juntos para fazer uma sociedade de iguais ou de redução de diferenças.
ConJur — Desses pensadores, quem colocou em prática essa visão?
Heleno Torres – Há uma tese do Carl Schmitt [filósofo alemão, 1888-1985] no Teologia Política, que é a figura do Estado de exceção permanente. O professor Eros foi o primeiro magistrado que conheço no Brasil que aplicou essa teoria. Uso essa figura para falar sobre o estado de insegurança jurídica que nós temos. Porque o Estado de Exceção não é um Estado que está em crise na visão de Carl Schmitt, é o Estado da normalidade mesmo. No Estado de normalidade, você tem uma exceção permanente, quando alguns órgãos são chamados a deliberar pelas exceções. Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção, o Supremo soberano. E a exceção é permanente. Em matéria tributária essa é a regra, no ICMS, nos convênios, tudo vai deixando para o Supremo decidir. Então a soberania passa do Legislativo para o Supremo Tribunal Federal. Nós temos aqui, com essa figura do Estado de exceção permanente, uma contínua passagem de competência.
ConJur – E essa transferência de competência é proposital?
Heleno Torres – Se não for proposital, é por omissão. O que é mais grave ainda porque mostra que o legislador não está preocupado com os problemas sociais-jurídicos do país. A insegurança jurídica em matéria tributária é o retrato do Estado de Exceção permanente que nós temos, onde há falta de segurança jurídica, além do que, há falta de certeza nas relações. Ora, quem é que vai investir milhões quando a segurança tributária é reduzida. É difícil. Pouquíssimos são os aventureiros num processo desses.
ConJur — Em relação à questão do controle difuso em matéria constitucional, como é que esse tipo de decisão judicial poderia ser tratada para não gerar desequilíbrio concorrencial?
Heleno Torres — Como está não pode continuar. O artigo 170-A é uma agressão sem tamanho porque ele diz que só é possível compensar tributos, após trânsito em julgado. Só que o trânsito em julgado da decisão acontece no Tribunal Regional Federal, não acontece no STJ, não acontece no Supremo. Os Recursos Extraordinários Especiais, inclusive, não têm efeito suspensivo. Então autorização para compensar tributo, tem que ser no TRF. Agora, talvez por medo, os contribuintes até aceitem essa prática, porque nunca se sabe o que vai acontecer lá em cima. Mas veja o quanto isso é grave. Se houver 100% de decisões favoráveis a todos os contribuintes que entrarem em primeira instância, 100% favoráveis em segunda instância, ainda assim, a União, o contribuinte não terá direito a compensar aquele tributo, tem que esperar a decisão em último grau. No STJ? Não, no Supremo Tribunal Federal. E aí você é levado abruptamente a uma espera enorme.
ConJur – E qual a sua opinião sobre a Repercussão Geral?
Heleno Torres – Repercussão Geral é uma figura esdrúxula, mais do que a da Súmula Vinculante. Eles vinculam de cima para baixo, impedindo que uma questão de grande relevância seja julgada e revista em novos julgamentos, que talvez mude essa percepção. Por exemplo, o grande julgamento do Superior Tribunal de Justiça para dizer se continuava aplicável aquela jurisprudência do cinco mais cinco, após a edição da Lei Complementar 118 para os fatos geradores acontecidos anteriormente. Vencido, mas não convencido, continuei insistindo depois de decisão abissal do Superior Tribunal de Justiça ter estabelecido na jurisprudência que aquela era uma lei processual e, portanto, apenas se aplicaria aos processos iniciados antes da Lei Complementar 118. No dia 25 de novembro o STJ mudou, radicalmente, essa posição para dizer que, agora, vale a tese do cinco por cinco a contar do fato gerador caso ele tenha ocorrido até a edição da Lei Complementar 118. Só que de lá pra cá passaram-se quase quatro anos e meio sob a égide daquela jurisprudência, impedindo todos os contribuintes de todas as instâncias de entrar com seu direito.
ConJur – E como fica a primeira instância?
Heleno Torres – Com a decisão de cima para baixo, você desestabiliza primeiro o juiz de primeira instância, que hoje em dia não tem o menor valor em matéria tributária. Não se valoriza mais o juiz de primeira instância, é como se eles fossem brurocratas. Qualquer sentença que o juiz de primeira instância der, a favor ou contra o contribuinte, não tem a menor repercussão. Isso é gravíssimo. O juiz de primeira instância, quando é provocado, alega matéria constitucional. Não é o contribuinte que faz o pedido. É o juiz de primeira instância, se houver o juiz que diga “bom, essa matéria tem repercussão de natureza constitucional”, então ele promove. É como a Lei dos Recursos Repetitivos.
ConJur – E nos TRFs?
Heleno Torres – Nós precisamos valorizar os TRFs. Hoje em dia,o TRF na forma em que se encontra, tornou-se quase uma esfera de passagem,ninguém quer saber qual a decisão. Você vê as pessoas preocupadas com a jurisprudência do TRF da 3ª Região ou da 5ª Região ou da 4ª? Quando eu comecei a advogar, e isso foi logo depois da Constituição de 88 no início da década de 90, nós nos preocupávamos com as súmulas e com as decisões dos tribunais. Hoje em dia não se pensa mais nos TRFs. Os desembargadores federais são quase como um carimbador de processos, passagem de julgamentos, o que é um absurdo. Por que? Porque não há motivação, há um déficit de jurisdição e um desgaste do judiciário federal como um todo.
ConJur – Até o próprio STJ é passagem.
Heleno Torres – É, em alguns casos. A gente poderia conter isso. Garantindo exatamente que o TRF em casos de constitucionalidade, provocasse o Supremo Tribunal Federal para que esse decidisse e, aí sim, viesse a decisão para primeira instância, segunda instância e tudo o mais. Algumas matérias podem justificar o tratamento diferenciado, claro que isso não vai esgotar a matéria que vai para o STJ. Mas matérias repetitivas, como IPI, base de cálculo de PIS/Cofins, que são questões constitucionais, poderiam ser solucionadas com esse sobrestamento no TRF.
ConJur – E no caso da Súmula Vinculante?
Heleno Torres – Um exemplo é o caso do Crédito Prêmio de IPI. Antes sequer de ter sido publicado o acórdão do STF, o ministro Lewandowski propõe Súmula Vinculante. Se a Constituição exige reiteradas decisões sobre a matéria para justificar a Súmula Vinculante, como é possível aplicar Súmula Vinculante no caso onde sequer os acórdãos foram publicados?
ConJur — O contribuinte, muitas vezes, não recolhe o imposto porque espera que a correção da Justiça seja menos onerosa do que o pgamento dos tributos. O planejamento tributário envolve essa questão?
Heleno Torres — Sim. Temos espaço aí para construção de um grande diálogo tributário. É uma forma de tentar aproximar o fisco do contribuinte. Acho que são instrumentos como esses que permitem essa aproximação e a eliminação de que só o processo administrativo, só a execução fiscal ou o mandado de segurança no Judiciário permite o contribuinte de litigar ou discutir crédito tributário. Não. Você tem de abrir o leque de possibilidades.
ConJur — E a Lei de Recuperação Fiscal?
Heleno Torres — Foi tão bem recebida que não recebeu qualquer crítica, nem da Casa Civil, nem da Receita Federal. O valor da recuperação da empresa é a garantia de manutenção dos empregos a continuidade dos pagamentos para a previdência social, pagamento de tributos, pagamento do passado e de futuros fatos geradores. Como é que você chega para o contribuinte e diz para ele, "olha você tem tudo aí para fazer um acerto, arruma aí sua vida", quando essas dividas são justamente o fundamento de suas crises, de seus problemas. Então eu defendo que pela recuperação tributária nós possamos garantir o equilíbrio de esforços público e privado para manter ativa a empresa, o valor da empresa na sociedade.
ConJur — Está em julgamento no Supremo a questão da devolução de substituição tributária. Se o preço no final foi menor do que o presumido, a empresa teria direito a ter restituída o que pagou a mais quando pagou a substituição. Qual sua opinião?
Heleno Torres — A substituição tributária prevista na Constituição foi posta como limitação constitucional do poder de tributar. Com isso, eu não posso interpretá-la contra o contribuinte. Eu tenho que interpretá-la dentro de uma visão de que é garantia constitucional para o contribuinte. Ela é uma forma de preservar os direitos fundamentais do contribuinte: a legalidade e o pagamento do tributo no limite do seu valor devido. Quando é que se tem o valor devido de ICMS? É quando ocorre o fato gerador definitivo. O sistema autoriza então o uso da substituição tributária para antecipar o recolhimento de tributo, mas diz a Constituição: observado o fato gerador definitivo. E reconhece a devolução caso o fato gerador não aconteça. Ele n umido. Esse novo fato gerador por uma diferença na base de cálculo deve ser contemplado ão acontece não é apenas quando não ocorre de forma absoluta, plena. Ele não acontece também quando não ocorre como está presumido. Se a presunção era de que o parcelamento seria de uma venda de 10 e a venda se dá a 8 ele não aconteceu como pres para devolução ao contribuinte na ponta. Ora, se essa devolução não ocorre é indiscutível que ocorre o efeito confiscatório, que é exigir tributos além daquilo que a lei estabelece. É você usar o sistema de tributo como um instrumento de confisco.
ConJur — Como acha que será decidido?
Heleno Torres — Espero que o ministro Carlos Britto, que é um homem sereno e justo, não interprete a regra da substituição como uma regra isolada. Ela tem de ser interpretada, primeiro, como limitação constitucional do poder de tributar; segundo, como garantia de preservação da igualdade; e terceiro, como critério de legalidade estrita, que os fatos geradores são aqueles como definitivamente ocorridos e não presumidos. Então, o mais grave é o efeito confiscatório. Insisto que o efeito de confisco não é somente a lei. É a alíquota, é a aplicação de instrumento de pressão fiscal como certidões negativas em exagero, a substituição tributária, acúmulo de crédito de Confins que não se devolve. Isso tudo é forma de confisco.