Mineradora tem crédito de ICMS por energia elétrica
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Consultor Jurídico
Os Fiscos brasileiros desprezam a não cumulatividade, seja no ICMS, no IPI ou no PIS/Cofins. Tratamos do tema de forma abrangente em coluna anterior (União e estados desacreditam a não cumulatividade), e desta vez exploraremos um sintoma recente deste mal crônico.
Cuida-se da Instrução Normativa 3/2013 da Superintendência de Tributação da Secretaria da Fazenda de Minas Gerais, proibindo — ademais, em caráter retroativo — o aproveitamento de créditos de ICMS quanto à energia elétrica empregada no beneficiamento de minerais.
O seu núcleo está no artigo 2º, que erige raciocínio às avessas[1]: se o produto não se sujeita ao IPI (como se minerais pudessem ser atingidos pelo imposto, com abstração do artigo 155, parágrafo 3º, da Constituição[2]) ou não sofreu descaracterização mineralógica (como se este fosse o resultado necessário de todo processo industrial sobre minerais), não é industrializado.
E, não o sendo, não atrai a regra do artigo 33, inciso II, alínea b, da Lei Complementar 87/96, que autoriza o crédito de ICMS pela energia elétrica “consumida no processo de industrialização”.
O diploma estadual não resiste ao cotejo com o Código Tributário Nacional, norma geral que vincula todos os entes políticos, ou com a legislação federal, cujos conceitos prevalecem no caso, por ser da União a competência para instituir o IPI (Constituição Federal, artigo 153, inciso IV). A premissa, auto evidente, é respaldada pela observação do ministro Herman Benjamin no Recurso Especial 842.270/MG, a lembrar que “a Primeira Seção teve oportunidade de, recentemente, ratificar o entendimento de que a definição do que seja industrialização, para fins de creditamento do ICMS incidente sobre energia elétrica, é dada pelo Regulamento do IPI, à luz do art. 46 do CTN” [3].
Pois bem: nos termos do artigo 46, parágrafo único, do CTN, “considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo”.
Ainda mais direto é o artigo 4º, inciso II, do Decreto 7.212/2010 (Regulamento do IPI): “caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como (…) a que importe em modificar, aperfeiçoar ou, de qualquer forma, alterar o funcionamento, a utilização, o acabamento ou a aparência do produto (beneficiamento)”.
Embora isso fosse desnecessário, o comando é reiterado de modo literal no artigo 222, inciso II, alínea b, do Regulamento do ICMS de Minas Gerais (Decreto 43.080/2002).
Não há dúvida de que o beneficiamento de minerais é atividade industrial, dado que altera a sua apresentação e os aperfeiçoa para o consumo. Mera interpretação gramatical o atesta.
Reitere-se que o fato de os produtos resultantes não sofrerem a incidência do IPI não interfere com o caráter industrial do processo, o qual é antes confirmado pela imunidade enunciada no artigo 155, parágrafo 3º, da Constituição e reproduzida no artigo 18, inciso IV, do Regulamento do IPI[4] — sem a qual o imposto federal seria normalmente devido.
Tampouco afasta o cariz industrial da atividade a circunstância de os produtos finais terem a mesma classificação mineralógica (minério de ferro, por exemplo) dos insumos iniciais.
De fato, pela sua própria definição legal, a industrialização pode ou não acarretar a alteração da natureza química da substância sobre a qual incide — a primeira hipótese, em rigor, ocorre apenas em uma das cinco modalidades listadas no artigo 4º do Regulamento do IPI: a transformação[5].
Assim, para mantermos o exemplo, tanto é industrial (a) o beneficiamento de minério de ferro quanto o (b) processo siderúrgico, que o transubstancia em espécies novas (gusa e, depois, aço).
A distinção entre ambos os processos, baseada no conceito de descaracterização mineralógica e na incidência do IPI[6], tem relevância para a CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral — Leis 7.990/1989 e 8.001/1990), exação não tributária que onera o produto mineral na última etapa de sua circulação enquanto tal, mas não grava os produtos fabricados a partir de minerais (aço, cimento, etc.).
Com efeito, se houve descaracterização mineralógica, não se tem mais o minério originalmente extraído. Se há espaço para a incidência do IPI, não se trata mais de mineral do país (pois estes são imunes), mas de bem produzido a partir dele, o que também deixa claro ter-se encerrado a cadeia de circulação do produto primário.
A distinção em tela (industrialização que origina ou não espécie nova) não tem, porém, nenhuma utilidade no âmbito do ICMS, em que tudo o que importa é saber se houve ou não um tipo qualquer de processo industrial, para que se possa cogitar de creditamento quanto à energia elétrica.
A industrialização que não desnatura o produto é admitida noutro contexto pelo próprio Fisco mineiro, como se verifica da Instrução Normativa 1/2003 da Superintendência de Legislação Tributária, que estabelece os requisitos para o gozo da imunidade ao ICMS das operações interestaduais com energia elétrica ou petróleo e seus derivados (Constituição Federal, artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea b).
Na conformidade do artigo 1º, parágrafo 1º, do diploma, “entende-se por industrialização a operação em que os mencionados produtos sejam empregados como matéria-prima e da qual resulte petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados ou energia elétrica”.
É dizer: ainda que seja criticável por não admitir a imunidade da energia ou do petróleo e derivados empregados na industrialização de outros bens — tema que não versaremos aqui —, a regra acerta ao atestar a existência de industrialização cujo produto final guarda a mesma natureza do insumo inicial (industrialização de petróleo em petróleo, de combustível em combustível, de lubrificante em lubrificante ou de energia elétrica em energia elétrica).
Por todas as razões acima expostas, o Conselho de Contribuintes daquela unidade federada tem declarado o direito aos créditos da energia elétrica empregada no beneficiamento de minerais (1ª Câmara de Julgamento, Acórdão 16.668/04, Relatora Conselheira Luciana Mundim de Mattos Paixão, DOE 23.09.2004)
Foi para suplantar essa jurisprudência, fundada diretamente na lei complementar e na legislação federal constitucionalmente habilitada ao trato da matéria, que se editou o diploma infralegal aqui analisado, cuja subalternidade impede a produção do efeito colimado.
A bem dizer, a vedação em causa não seria válida mesmo que fosse veiculada em lei ordinária ou complementar.
Deveras, ao formular o princípio da não cumulatividade (ainda que este seja interpretado em sua forma mais restritiva, que só admite o crédito físico), o artigo 155, parágrafo 2º, inciso I, da Constituição garante o aproveitamento dos créditos pela aquisição de insumos integrados ao produto final ou ao resultado material do serviço ou consumidos na produção do primeiro ou na prestação do segundo, sendo inválida toda redução deste núcleo mínimo.
De notar, para concluir, que o direito ao creditamento do ICMS incidente sobre a energia elétrica aplica-se inclusive a atividades que tidas por industriais por mera equiparação legal (as telecomunicações, como decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no já referido Recurso Especial 842.270/RS), o que reforça a existência do direito em relação às que o são pela sua própria natureza.
Merece punição o contribuinte que recorre a artifícios para furtar-se a pagar o que deve. Nada mais justo. Mas só poderemos dizer-nos sérios quando dermos igual tratamento a autoridades fiscais que exigem o que sabem ser descabido. Por ora, até a restituição do indébito é uma quimera…