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Incide o ICMS e não o ISS ou IPI sobre a manipulação de medicamentos

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Portal Fenacon

 

 

I – Introdução

O serviço de manipulação de medicamentos é objeto de polêmico debate doutrinário e jurisprudencial acerca de sua tributação. Atualmente o Superior Tribunal de Justiça sustenta que sobre tal serviço incide o ISS e não o ICMS (01) (02) (03) (04) (05).

Todavia, tal entendimento deve ser reformado, posto que, na verdade, a lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003 não prevê a incidência de ISS sobre o serviço de manipulação de medicamentos. Incide apenas o ICMS, sobre a circulação de mercadorias.

A questão é interessante pelo fato de o prestador do serviço neste caso não estar interessado em lucrar mediante a venda de insumos para produção de remédios, na verdade buscando exercer uma atividade econômica que dá valor às habilidades de manuseio de elementos usados para produção de remédios específicos para as necessidades dos contratantes.

Sendo assim, não havendo previsão de incidência de ISS sobre a atividade, deve incidir o ICMS sobre as mercadorias fornecidas ao cliente que podem ser fornecidas a preço de custo, podendo neste caso o valor agregado tributável pelo ICMS ser simplesmente zero.

II – Da não incidência do ISS sobre o serviço de manipulação de medicamentos

Inegavelmente a manipulação de medicamentos é um serviço. O tomador do serviço solicita ao farmacêutico que faça determinado medicamento especialmente para ele, usando como base uma receita entregue pelo contratante. O prestador de serviços então produz um remédio exatamente de acordo com as especificações fornecidas pelo tomador, usando insumos que normalmente já constam em sua propriedade. Neste caso, trata-se de uma operação mista, sendo uma prestação de serviços com fornecimento de mercadoria. Também é possível que o contratante seja o proprietário do material e entregue este para o prestador de serviços apenas fazer a manipulação do insumo. Nesta última hipótese trata-se de mera prestação de serviços e não uma operação mista.

Apesar de, do ponto de vista jurídico, estarmos diante de um fato que poderia ser tributado pelo ISS, posto que é um serviço, não há previsão legal naLei Complementar nº 116/03para que um Município (06) possa instituir o imposto. Normalmente as municipalidades invocam o item 4.07 da lista anexa para embasar autuações fiscais, que insere como fato gerador do ISS os serviços farmacêuticos:

LISTA DE SERVIÇOS ANEXA À LEI COMPLEMENTAR Nº 116, DE 31 DE JULHO DE 2003
4 – Serviços de saúde, assistência médica e congêneres. (…)
4.07 – Serviços farmacêuticos.

O Superior Tribunal de Justiça tem enquadrado os serviços de manipulação no item 4.07 da lista anexa. Todavia, tal enquadramento é impossível de ser feito, posto que o Senado Federal, no projeto de lei complementar que deu origem àLC nº 116/03, deixou explícito que em tal item não pode ser enquadrado o serviço de manipulação de medicamentos, conforme parecer do Senador Romero Jucá publicado no Diário do Senado Federal de 18.06.03, que suprimiu a expressão “inclusive de manipulação” que constava no item 4.07 da lista do projeto de lei que deu origem àLC nº 87/96:

PARECER Nº 688, DE 2003
“Da Comissão de Assuntos Econômicos, sobre o Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 161, de 1989 – Complementar, (nº1/91 – Complementar, naquela Casa), de autoria do Senador Fernando Henrique Cardoso, que define os serviços de qualquer natureza sujeitos ao imposto de competência dos municípios, previsto no inciso IV doart. 156 da Constituição, e estabelece suas alíquotas máximas
Relator: Senador Romero Jucá
(…) No que respeita a fatos insertos no campo de incidência do ICMS, após acurada aná lise da Lista de Serviços, em conjunto com representantes de Estados e Municípios, convencemo-nos de que os seguintes dispositivos do Substitutivo e da Respectiva Lista devem ser objeto de aná li se destacada: (…)
– expressão “inclusive de manipulação” do subitem 4.07 da lista anexa de serviços, pelo fato de poder tratar-se de operação mista, isto é que envolve o fornecimento conjunto de mercadorias e serviços, circunstância em que criar-se-ia um es paço para a elisão fiscal das mercadorias aí envolvidas de sua sujeição ao ICMS;” (Diário do Senado Federal de 18.06.03; Pgs. 15726 a 15731)

Ora, consta claro que a vontade do legislador complementar é de não incluir o serviço de manipulação de medicamentos na hipótese de incidência do ISS. Muito se debate no STJ a possibilidade de uso das interpretações extensiva e analógica da lista anexa àLC 116/03, com uma dose de influência de Norberto Bobbio neste pensamento, todavia neste caso nenhum dos dois tipos de interpretação pode ser utilizado, posto que não há qualquer possibilidade de se usar a interpretação extensiva ou a interpretação analógica para afrontar uma vontade do legislador tão explícita, tão clara, tão nítida.

III – A incidência do ICMS no serviço de manipulação de medicamentos

Uma vez deixado claro que não incide o ISS sobre o serviço de manipulação de medicamentos, resta imperativo, no entanto, que se observe que incide o ICMS sobre a transferência de propriedade do medicamento ao tomador do serviço.

Sendo a questão uma prestação de serviços com fornecimento de mercadoria, ou seja, uma operação mista, é fato jurídico sujeito à competência tributária dos Municípios e dos Estados. Não há previsão para a incidência de ISS nesta operação mista, mas este caso está enquadrado na hipótese de incidência do ICMS, já que há circulação de mercadoria.

Uma operação mista é uma situação na qual há prestação de serviço com fornecimento de mercadorias, mas com predominância da ideia de prestação de serviços. Difere-se de uma prestação de serviços pura, onde não há fornecimento de qualquer mercadoria. Quando há a predominância da ideia de circulação de mercadorias sobre a de prestação de serviços, sequer se considera que a situação é uma operação mista, diz-se que é mera circulação de mercadorias. A operação mista, portanto, é uma prestação de serviços na qual há inclusive o fornecimento de mercadorias, em caráter subsidiário.

Sobre uma prestação de serviços pura haverá a incidência do ISS, ou do ICMS, caso o serviço seja de competência tributária estadual. Sobre a operação mista, haverá a incidência apenas do ISS, caso a lei complementar assim determine. Esta mesma lei pode determinar que sobre a operação mista incida o ISS sobre a prestação de serviços e o ICMS sobre o fornecimento de mercadorias. Ou naturalmente apenas o ICMS, quando se trata de serviços de competência tributária estadual.

Quanto à possibilidade de sujeitar a tributação da operação mista apenas ao ISS, deverá o legislador complementar fazer mão de tal determinação apenas quando o valor das mercadorias fornecidas pelo prestador de serviço forem irrisórios, caso contrário deverá inserir o fato na hipótese de incidência do ICMS, sob pena de invadir a competência estadual. A lei complementar deve usar um critério de razoabilidade para determinar se, sobre a operação mista, incide apenas o ISS ou se incide este sobre a prestação de serviços e o ICMS sobre o fornecimento de mercadorias (07).

Tais afirmações restam claras ao se analisar os dispositivos daLC nº 87/96e daLC nº 116/2003.

LEI COMPLEMENTAR Nº 87, DE 13 DE SETEMBRO DE 1996
Dispõe sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências. (LEI KANDIR)
Art. 2ºO imposto incide sobre: (…)
IV – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios;
V – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços sujeitos ao imposto sobre serviços, de competência dos Municípios, quando a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.

LEI COMPLEMENTAR Nº 116, DE 31 DE JULHO DE 2003
Dispõe sobre o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, e dá outras providências.
Art. 1ºO Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.
§ 2º Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias.
Questão mais difícil, todavia, se põe quando a legislação complementar não prevê expressamente a incidência do ISS sobre uma prestação de serviço com fornecimento de mercadorias incluída na competência tributária dos Municípios e tampouco fala claramente que neste tipo de caso há a incidência do ICMS sobre toda a operação. Nenhum dos dispositivos mencionados é aplicável.
Como o serviço seria de competência tributária do Município, apenas ele poderia tributar a prestação de serviços. Não pode o Estado tributá-la, a não ser, naturalmente, que não haja a predominância da prestação de serviços no caso, o que nos levaria à conclusão de que se trata o caso na verdade de uma mera circulação de mercadorias, tributável, portanto, pelo ICMS.
Tal vertente de pensamento não seria possível, já que pela natureza da situação que está sob análise se chega à conclusão de que se tem uma prestação de serviços com fornecimento de mercadoria e não pura circulação de mercadoria, já que o fato de a manipulação de medicamentos ser feita especificamente conforme a solicitação de um cliente, sendo produzido um bem específico para o contratante, faz sobressair o aspecto de prestação de serviço da situação.
Ou seja, mesmo a lei complementar não pode inserir na hipótese de incidência do ICMS tal prestação de serviços, sob pena de ser declarada inconstitucional por violar a repartição de competências tributárias. Sendo assim, não é possível que se aceite a tese segundo a qual, se tratando de operações mistas, não havendo a incidência do ISS sobre a operação, haverá a incidência do ICMS.
Caso não haja a previsão de incidência do ISS na lista do imposto sobre serviços, deve incidir o ICMS não sobre toda a operação, mas apenas sobre a circulação de mercadoria, com base no inciso I doartigo 2º da LC nº 87/96.

LEI COMPLEMENTAR Nº 87, DE 13 DE SETEMBRO DE 1996
Art. 2ºO imposto incide sobre:
I – operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares;
A prestação de serviços, portanto, resta sendo uma hipótese de não incidência de ISS. A tributação acaba por ser feita somente pelo ICMS e sobre o valor das mercadorias, excluídos o valor da prestação de serviço aplicada nos bens. O contratado adquire os insumos separadamente e o transforma em um novo produto, que é o medicamento. Todavia tal processo não é uma industrialização, posto que a personalização retira do processo de transformação tal caráter, não havendo uma produção em série de produtos idênticos, entornados no mercado. O que se vê é que o preço estipulado pelas partes contratantes é a conjugação do custo dos insumos repassados aos contratantes com o valor estipulado pela prestação de serviço de manipulação desses insumos.
A legislação do IPI deixa claro que não é o caso de uma industrialização o serviço ora analisado:

LEI Nº 4.502, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1964
Art . 3ºConsidera-se estabelecimento produtor todo aquêle que industrializar produtos sujeitos ao impôsto.
Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo, considera-se industrialização qualquer operação de que resulte alteração da natureza, funcionamento, utilização, acabamento ou apresentação do produto, salvo: (…)
III – O preparo de medicamentos oficinais ou magistrais, manipulados em farmácias, para venda no varejo, diretamente e consumidor, assim como a montagem de óculos, mediante receita médica. (Incluído peloDecreto-Lei nº 1.199, de 1971)

DECRETO Nº 7.212, DE 15 DE JUNHO DE 2010
Art. 5ºNão se considera industrialização: (…)
V – o preparo de produto, por encomenda direta do consumidor ou usuário, na residência do preparador ou em oficina, desde que, em qualquer caso, seja preponderante o trabalho profissional;
VI – a manipulação em farmácia, para venda direta a consumidor, de medicamentos oficinais e magistrais, mediante receita médica (Lei nº 4.502, de 1964, art. 3º, parágrafo único, inciso III, eDecreto-Lei nº 1.199, de 27 de dezembro de 1971, art. 5º, alteração 2a);

Sendo, portanto, o valor agregado oriundo de uma prestação de serviço não tributável pelo ISS, acaba por ser a mercadoria podendo ser alienada pelo mesmo custo de aquisição, não havendo valor agregado tributável pelo ICMS em função da compensação de créditos e débitos de ICMS, tomando-se como base de cálculo o custo das mercadorias repassadas ao contratante, excluindo-se o valor referente à prestação de serviço.

A questão é que o objetivo do prestador de serviço, neste caso, não é lucrar com a venda dos insumos. Não é bem isto que ele objetiva, podendo tais materiais serem fornecidos a preço de custo ao contratante. Se pretende lucrar com a mão-de-obra empregada neste processo de transformação personalizada. São as habilidades de manipulação que geram o preço contratado.

Isto fica claro, posto que caso o tomador do serviço tivesse a habilidade de manipular elementos para criar medicamentos ele simplesmente compraria os insumos em uma loja e faria o remédio em sua própria casa.

IV – Conclusão

O que se conclui é que o serviço de manipulação de medicamentos é normalmente uma operação mista, ou seja, uma prestação de serviços com fornecimento de mercadorias. Não havendo incidência de ISS sobre a prestação de serviços, por falta de previsão na legislação complementar, resta esta sendo uma hipótese de não incidência deste imposto. Incide apenas o ICMS, sobre a alienação dos insumos usados na prestação de serviço, transformados em um produto final. Se trata de um contrato de prestação de serviços no qual junto são fornecidos bens. Desta maneira, só se pode tributar pelo ICMS o valor referente à alienação de bens. Caso o tomador do serviço forneça ao prestador todos os bens necessários para a prestação de serviço sequer há a incidência do ICMS, sendo a atividade, neste caso, uma hipótese de não incidência de ICMS e de ISS.

Quanto ao IPI, não incide em qualquer das hipóteses mencionadas, posto que se analisa uma prestação de serviços feita de acordo com exigências específicas de clientes, sendo bens produzidos de acordo com um contrato de prestação de serviços. Não se trata de produtos sendo entornados no mercado, impostos ao consumidor, produtos pré-concebidos, não havendo que se falar em industrialização.

Notas

(01) AgRg no Ag 1212016/PE, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/05/2010, DJe 15/06/2010.

(02) AgRg no REsp 1158069/PE, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 20/04/2010, DJe 03/05/2010.

(03) REsp 975.105/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 09/03/2009.

(04) AgRg no AREsp 445.591/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/11/2014, DJe 24/11/2014.

(05) LOBO, Daniel Lins. Apesar de amplo posicionamento contrário, farmácias de manipulação são contribuintes do ICMS. Revista Âmbito Jurídico. <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11005#_edn3>. Acesso em 30.03.15.

(06) Lembre-se que o Distrito Federal tem a competência para instituir tanto o ICMS quanto o ISS, estando também implicitamente abrangido pelo presente trabalho.

(07) Caso contrário se teria que o poder do legislador complementar seria ilimitado, dispondo sobre a competência tributária dos Estados e Municípios a bel prazer.

 

Pedro Mosqueira

Estudante de Direito do 12º período na Universidade Federal Fluminense.