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É preciso sonhar com a justiça tributária no País

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É preciso sonhar com a justiça tributária no País.
Eliana Haberli

Clóvis Panzarini, economista especializado em Tributos há mais de três décadas, começou na Secretaria da Fazenda paulista como estagiário, em 1968, quando cursava economia na Universidade de São Paulo (USP). Aposentou-se depois de 35 anos, na posição máxima da carreira, de coordenador tributário. Consultor e membro do Conselho de Altos Estudos de Finanças e Tributação da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), o especialista diz que "sonha" com a criação de um Imposto de Valor Agregado (IVA) amplo, de competência federal, incidente sobre todas as bases de consumo hoje tributadas pela União, Estados, Distrito Federal e municípios substituindo o ICMS, de competência estadual.

Usa o verbo sonhar por que avalia ser muito difícil a instituição de uma reforma tributária desse porte. Propõe, no seu trabalho "Conceitos para uma Reforma Tributária", que está publicado na edição de abril da revista Digesto Econômico, um sistema que combina grande parte da proposta do senador Francisco Dornelles sobre o tema, com alguns pontos da Proposta de Emenda Constitucional do governo, que tramita no Congresso Nacional, a PEC 31-A, de 2007.

Diário do Comércio – Como está o panorama da reforma tributária?
Panzarini –
Desde 1993 multiplicam-se as propostas de reforma tributária. As atuais são as propostas de emenda constitucional do governo (PEC 31) e a do Dorneles (senador Francisco Dornelles, do PP do Rio de Janeiro), que ainda nem está consubstanciada formalmente. Ele alinha os principais pontos que devem ser considerados numa reforma tributária. Eu faço uma análise técnica e concluo que a proposta do Dornelles é mais revolucionária que a proposta do governo, ainda que seja um pouco… poética, romântica.

DC – Poética?
Panzarini –
É, descolada da realidade política. É uma proposta que prevê profunda modificação federativa, ao tocar no principal tributo dos Estados, que é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Não acredito que ela tenha chance de ser aprovada pelo parlamento. Mas se é para sonhar, vamos analisar essa idéia.

DC – É possível ainda ser aprovada uma reforma tributária neste ano?
Panzarini –
O tema está completamente em baixa. Num ano político, como este, não há nenhuma possibilidade de se discutir um tema tão polêmico como o federativo. Reforma tributária implica perdas e ganhos. Não é hora de falar de uma região tirar dinheiro da outra, um Estado tirar dinheiro do outro, ou tirar dinheiro da União. É um assunto proibido neste momento, haja vista o que aconteceu com o pré-sal, que foi uma bobeada do governo federal e deu no que deu. Imagine discutir outro pré-sal, muito mais explosivo, a repartição do bolo tributário. Em anos não-eleitorais já é explosivo. Há conflitos de toda ordem – verticais (entre os poderes), horizontais (entre as regiões), setoriais (entre indústria e varejo, por exemplo) e o conflito entre Fisco e contribuinte.
É muito complicado.

DC – Como é o histórico das tentativas de reforma tributária?
Panzarini –
As reclamações contra a falta de eficiência e a falta de neutralidade do sistema começaram em 1994, 1995. Antes, o País e as empresas tinham o problema muito maior da inflação, a moeda era volúvel, era podre, a ineficiência tributária era disfarçada pela ineficiência financeira. Com 1% de inflação ao dia, o fato de eu ter 2% ou 3% a mais de carga tributária era um problema menor. Ninguém reclamava de guerra fiscal, de tributação de fronteira, porque os problemas eram muito mais graves. Quando passamos a ter moeda digna desse nome, o problema tributário emergiu. Antes, o empresário não precisava ser eficiente, precisava ser esperto.

DC – Como orientação para os futuros governantes, o que o senhor tem a dizer sobre o tema?
Panzarini –
É um tema que estará sempre na pauta. O principal problema tributário brasileiro se chama ICMS, que é um imposto que representa 20% da carga tributária do País, ou 7% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. É um imposto muito pesado, o maior de todos, que rende mais de R$ 200 bilhões por ano. O segundo tributo é a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), federal, que rende R$ 150 bilhões por ano. Então o ICMS, de longe, é o maior imposto, o mais complexo e o mais delicado. Eu digo que ele está mal colocado na competência estadual, porque é um imposto de natureza federal. No mundo inteiro, um imposto desse tipo, de valor agregado, é federal.
Por quê? Porque as decisões tributárias de um Estado acabam afetando a economia dos demais Estados. Por isso é que no Brasil acontece toda essa confusão de guerra fiscal, tributação de fronteira. Surgem legislações estaduais conflitantes uma com a outra…

DC – Como nasceu um imposto destinado a trazer conflitos? Não era previsível?
Panzarini –
Ele foi criado em 1967, época de um regime fechado, em que mal existia federação. (Hoje os Estados têm um poder de fato). Em 1964, e nos anos seguintes, não havia esse poder, do governo subnacional. Existia só o governo nacional, atuando com mão de ferro. Em 1965 foi criado o ICM, parecido com o de hoje, com a base um pouco menor. Entrou em vigor em janeiro de 1967. Ninguém discutiu muito – era um País unitário, governado por militares. E o imposto funcionou bem de 1967 até 1985, por aí. A confusão começou a partir do momento em que os Estados começaram a recuperar o poder político. Nasceu o federalismo de fato no Brasil e o País ficou com um imposto mal colocado. Veio o ICMS, em 1988, que era a mesma coisa, apenas ampliando a base com a inclusão de serviços de transporte, de comunicação, energia elétrica, combustíveis e minerais.

DC – Por isso é que o senhor diz que o ICMS tem um defeito genético?
Panzarini –
Eu brinco dizendo que o ICMS tem 26 cromossomos a mais. Deveria ter um só – a União -, mas tem 27, as 27 unidades federadas.

DC – Essa concepção é irreversível?
Panzarini –
Acho irreversível. Dizem até que não se pode tirar o ICMS da competência estadual porque estaríamos ferindo o princípio federativo, que é cláusula pétrea da Constituição. Só com uma nova assembléia constituinte poderia ser mexido nisso daí. Mas o mais importante não é isso, é o aspecto político. Se falamos de reforma do ICMS, falamos de uma reforma feita por técnicos estaduais, pois jamais se fará uma reforma desse imposto à margem da vontade dos Estados. Se uma reforma do ICMS for tratada no parlamento nacional, não passaria pelos crivos políticos das bancadas estaduais sem a aprovação dos técnicos estaduais. Não vejo como o ICMS possa ser profundamente modificado, sobretudo modificado nessa questão de suprimir a competência estadual pela federal. Ainda que a base de repartição do imposto pelo governo federal beneficiasse os Estados, esses não abririam mão de fazer política tributária, de perder a receita própria em troca da transferência federal.

DC – A grande maioria dos problemas de guerra fiscal desapareceria, mudando a competência?
Panzarini –
Desapareceriam, mas surgiria outro problema político. Quem vai definir o critério de partilha nesse imposto federal? Quem tem poder político no Congresso Nacional vai defender a maior parcela, como acontece com o pré-sal. São Paulo, por exemplo, tem hoje 33% da arrecadação total do ICMS. O Estado teria força política para manter esses 33% na partilha?

DC – Tirar um pedaço da arrecadação de São Paulo é um pensamento disseminado?
Panzarini –
A disputa é permanente, é uma disputa de ricos contra pobres, ricos contra ricos e pobres contra pobres. Na disputa federativa, não existe ideologia, existem bancadas regionais. A extrema direita e a extrema esquerda do Piauí, por exemplo, se unem. Eu me lembro quando assessorei o então deputado José Serra na Comissão de Orçamento, Finanças e Tributação da Assembléia Nacional Constituinte, que as bancadas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste se uniram e forraram o Congresso Nacional com cartazes – "292 votos e uma só vontade". Estou dizendo isso para mostrar que a questão tributária perpassa pela questão federativa e aí se torna uma questão política e não técnica. Eu escrevi para a revista Digesto Econômico esse artigo colocando as minhas vontades, as minhas ansiedades. Mas elas são totalmente descoladas da realidade política. É muito fácil reunir sábios em tributação numa sala e produzir uma reforma. Isso aconteceu em 1965. Foi produzido um modelo tributário revolucionário para a época, que depois foi aprovado no parlamento. Mas não era um parlamento livre. Hoje, eu não acredito numa reforma que elimine de maneira radical todos os problemas que existem.

DC – Mas o senhor diz que as coisas só podem ser modificadas aos poucos…
Panzarini –
Algumas coisas podem ser modificadas, efetivamente. Mas a minha preocupação é que cada vez que se modifica, vai para pior.

DC – O que o senhor acha do sistema de cobrança do ICMS no destino?
Panzarini –
O que é imposto no destino? O governo de cada Estado tributa tudo da maneira que decidir, internamente, todos os produtos. Ele não joga imposto para fora de sua fronteira e o que sai do Estado não é problema dele. A mercadoria chegaria ao outro Estado tributariamente "virgem", como eu chamo. Eu, governo estadual paulista, não consigo tributar a mercadoria no Maranhão, por exemplo. E para o Maranhão, tanto faz comprar de São Paulo ou da Suíça. O grande problema do princípio de destino é o controle da operação interestadual. O governo cobra 18% de imposto na mercadoria que vai da Capital para Atibaia e cobra zero% da mercadoria que vai para Extrema, alguns quilômetros adiante. Como controlar isso?
Ambas as alternativas de operacionalização da cobrança no destino (alíquota zero na fronteira ou alíquota "cheia" na fronteira) apresentam problemas ainda não solucionados. Ademais, qualquer uma das alternativas agrava o já grave problema de acumulação de crédito do ICMS. A primeira – alíquota zero na fronteira – implica aumento de crédito acumulado na escrita fiscal dos contribuintes do Estado exportador: qualquer operação interestadual terá efeito idêntico ao de uma exportação para o Exterior na conta fiscal do contribuinte remetente da mercadoria. A segunda alternativa – cobrança da alíquota "cheia" na origem com repasse da receita ao Estado importador – implica aumento de crédito acumulado no Estado de destino, quando a mercadoria adquirida em operação interestadual, ou o produto dela resultante, for objeto de exportação para o Exterior. Atualmente, uma siderúrgica capixaba, por exemplo, compra minério em Minas Gerais e se credita de 7% de ICMS, que acaba virando "moeda podre", congelada na sua escrita fiscal. Aprovada essa proposta, esse crédito decorrente da operação interestadual aumentará em 157%, uma vez que o minério sairá de Minas Gerais tributado com 18% de ICMS. A soja, que sai de Mato Grosso para São Paulo com 12% de ICMS, passará a ser tributada na fronteira com alíquota de 18%, dando direito a idêntico crédito ao comprador interestadual. É verdade que nesse desenho o Estado destinatário é "ressarcido" pelo contribuinte do Estado remetente. Entretanto, nada garante que os Estados destinatários de matérias-primas se disporão a honrar créditos acumulados.

DC – Como a complicação está hoje?
Panzarini –
Hoje o sistema é misto, numa operação interna em São Paulo, por exemplo, a alíquota é 18%. Ou seja, São Paulo para São Paulo ou para Atibaia (SP), é 18%. São Paulo para Extrema (MG) é 12%. Ou seja, sobre seis pontos para o outro Estado cobrar lá e mais 18% sobre o que agregar lá.

DC – O que o senhor tem a dizer sobre as novas tecnologias para facilitar as arrecadações, incluindo essas que os governos estaduais anunciam para facilitar a fiscalização nas fronteiras?
Panzarini –
O assunto da tecnologia no combate à sonegação corre paralelo ao que estamos conversando. As modernas ferramentas tecnológicas vêm ajudando o Fisco. A nota fiscal eletrônica é um instrumento que vai amarrar de tal forma o contribuinte que vai ficar complicado sonegar, embora sempre haja maneiras. Isso é positivo. Mas seria muito mais positivo se os ganhos em produtividade da máquina fiscal em decorrência do aprimoramento tecnológico fossem transferidos para o consumidor na forma de redução de carga tributária. Se com 18%, o Fisco arrecadava R$ 200 bilhões e agora, por conta da modernidade, com os mesmos 18% a arrecadação chega a R$ 250 bilhões, a carga poderia ser reduzida para 16%. Mas os ganhos de produtividade acabam sendo apropriados pelo governo.

DC – O governo sempre precisade mais recursos…
Panzarini –
Precisa de mais recursos para aumentar seus gastos e seus desperdícios. Se ele usasse esse "plus" para aumentar investimentos, é uma coisa. Mas ele acaba aumentando seus gastos para fazer mais publicidade, para aumentar o empreguismo… O contribuinte não recebe o repasse.

DC – A reforma reduziria a carga tributária?
Panzarini –
Não. Para reduzir carga, precisa reduzir gastos e desperdícios. Se o síndico reduzir a taxa de condomínio do prédio sem reduzir a despesa, vai ter de fazer arrecadações extras. Para reduzir a taxa de condomínio, precisa reduzir a conta da luz, o número de faxineiros…

DC – É alta a carga tributária no Brasil?
Panzarini –
A percepção da carga tributária pelo contribuinte é alta porque ele não recebe os serviços na mesma proporção de suas contribuições. Ele paga plano de saúde, escola particular para o filho, segurança e assim por diante. Da mesma forma, os 37% de carga tributária da empresa são altos porque são de má qualidade. Se a carga fosse de boa qualidade, o País estaria tributando igualmente a produção nacional e a produção importada. Se a carga fosse neutra, não interferiria em nada na competitividade da empresa brasileira. O princípio da neutralidade, um dos atributos de um bom sistema, garante que a tributação deve ser otimizada de forma a interferir o mínimo possível na alocação de recursos da economia, pois alterações nos preços relativos de bens e serviços, decorrentes do fator tributário, quase sempre comprometem a eficiência econômica e o bem-estar. Em muitos países, empresários não reclamam de uma carga tributária do mesmo tamanho que a nossa…

DC – O País vem crescendo no período recente. A falta de uma melhor qualidade tributária atrapalhou o crescimento? Ele poderia ser maior?
Panzarini –
Sem dúvida. O crescimento comparado com outros países emergentes foi medíocre. A qualidade tributária é o gasto com investimento. O Brasil arrecada mal, com tributos ineficientes e cumulativos, como é o PIS-Cofins (agora, um pouco menos, mas ainda cumulativo) e gasta errado. Enquanto a China está investindo uma barbaridade, nós continuamos com dificuldades terríveis de infraestrutura. Há tentativas equivocadas também, em outros países emergentes. A Índia, por exemplo, está tentando o IVA regional, caminhando para pior. Eles não sabem a confusão em que estão se metendo. Mas, lá, estão aplicando o novo IVA em algumas poucas províncias.

DC – Em termos internacionais, nosso sistema tributário é atrasado?
Panzarini –
Hoje, o imposto de consumo mais moderno é do tipo de valor agregado, que é o ICMS nosso, nós temos uma experiência de 40 anos nisso… O problema, repito, é a competência errada. No mundo inteiro, exceto no Canadá e agora nesse exemplo parcial da Índia, o IVA é um imposto federal. Mas nos países mais desenvolvidos os impostos diretos, que incidem sobre a renda e a propriedade, têm peso muito mais expressivo na formação da carga tributária. Embora mais difíceis de serem arrecadados, são mais justos. No imposto direto, você calibra com alíquotas marginais crescentes, você não cobra nada de quem ganha pouco, cobra mais ou menos dos médios e cobra mais de quem ganha muito. No Brasil, os impostos indiretos, aqueles que incidem sobre o consumo, é que têm peso maior e eles são injustos. O imposto do pãozinho é igual para o banqueiro e para o mendigo. Nesse sentido, estamos atrasados.

DC – Na hipótese de o próximo governo, em algum momento, conseguir o IVA nacional, com competência federal e distribuído proporcionalmente aos Estados, a questão estaria resolvida?
Panzarini –
Ainda restaria um problema, o da máquina estadual de fiscalização. Digamos que o Acre, por exemplo, receba 1% da arrecadação total do IVA e tenha condições de ter a fiscalização estadual adequada para garantir a cobrança de 1% do total. Ele teria interesse em forçar a fiscalização? De qualquer forma, fiscalizando ou não, receberia a sua parte do bolo. Por isso é que proponho uma fórmula mista que considere o resultado da máquina estadual de fiscalização ao lado do consumo de cada Estado.

DC – A distribuição da arrecadação entre União, Estados e municípios é justa?
Panzarini –
A Constituinte de 1988 fez uma distribuição fantástica de receita, da União para Estados e municípios. Literalmente, quebrou a União. Mas a Constituinte deixou a competência para a União criar contribuições. E ela recompôs "deliciosamente" seu quinhão, criando CPMF, aumentando PIS (Programa de Integração Social), Cofins, etc. Em pouquíssimo tempo, a União recuperou seu quinhão da forma mais inadequada possível, criando contribuições cumulativas, cheias de defeitos. No ano passado, o PIS e a Cofins, somados renderam muito mais que IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e Imposto de Renda, que foram impostos fortemente partilhados pela Constituinte. Quanto à distribuição federativa, ela me parece equilibrada.