A decisão de excluir o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins a partir de 2017 fechou uma página sobre o litígio entre a Fazenda e os contribuintes no Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, uma série de consequências administrativas, econômicas e até mesmo judiciais surgiram após a decisão do recurso extraordinário 574.706 (tema 69).
Embora algumas empresas, como a Petrobras, já tenham divulgado fatos relevantes ao mercado sobre o valor a ser recebido, ainda há dúvidas entre as empresas de como será o procedimento de resgate dos valores cobrados de forma indevida pelo fisco. Também não está fechado o cálculo de real impacto fiscal.
Além disso, há movimentações judiciais nas chamadas teses filhotes, ou seja, discussões judiciais que podem se apropriar da tese firmada pelo Supremo. Um exemplo é a exclusão do ISS na base de cálculo do PIS e da Cofins. Há também a discussão, nos setores regulados, se os valores pagos de forma indevida e recuperados pelas empresas serão devolvidos aos consumidores e de que forma isso será feito, e ainda debates sobre a forma de apropriação de créditos de PIS e Cofins após a decisão do STF.
O fato é que a decisão tributária afeta o governo e as empresas. Segundo o Serviço de Informações ao Cidadão do Ministério da Economia, em uma amostra feita nos documentos transmitidos em 2019 e 2020, 92,5% das compensações oriundas de ações judiciais referem-se à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e Cofins. Dessa forma, mantendo essa proporção, nos dois anos, seriam pelo menos 75.751 ações sobre o assunto que pediram compensações na Receita Federal.
O Ministério informa uma evolução na quantidade de compensações realizadas por decisões judiciais e o aumento substancial dos valores, impulsionados pela exclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins. Em 2017, foram compensados R$ 3,34 bilhões referentes a 9.971 ações; em 2018, R$ 4,08 bilhões em 10.004 ações; em 2019, 23.924 ações e R$ 23,11 bilhões; em 2020, 57.970 ações e compensações na ordem de R$ 63,6 bilhões. Em 2021, até o mês de março ocorreram 20.387 ações e o total de R$ 23,35 bilhões compensados.
A Receita Federal ainda não divulgou números oficiais sobre o impacto fiscal da decisão nem como serão os procedimentos a serem adotados para os contribuintes que têm ações judiciais e os que não têm. Questionada pelo JOTA, a Receita limitou-se a responder que “após a modulação, os efeitos devem ser calculados a partir dos limites estabelecidos na decisão. Dadas as inúmeras situações e possibilidades do alcance da decisão, os cálculos serão complexos, envolvem processamento e serão apresentados tão logo estejam disponíveis”.
Por enquanto, a resposta que o contribuinte tem do fisco é um parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), divulgado em 24 de maio, comunicando à Receita Federal e a outros órgãos da administração pública a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que modulou os efeitos da retirada do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins.
A comunicação faz parte do trâmite em casos de processos tributários com repercussão geral ou de recursos repetitivos, e, normalmente, é feita após a publicação do acórdão. Porém, segundo fontes consultadas pelo JOTA, a PGFN resolveu antecipar o documento porque os limites da decisão foram bem delineados no julgamento e por conta da repercussão do caso.
No documento, a PGFN comunica que o ICMS a ser retirado é o destacado em nota fiscal, e não o efetivamente recolhido, e que os efeitos da decisão devem se dar após 15 de março de 2017, ressalvadas as ações judiciais e administrativas protocoladas até essa data. A PGFN recomenda ainda que o contribuinte vá à Receita Federal para fazer a retificação das declarações de compensação dos valores pagos a mais.
Na prática, a partir do comunicado, a Receita não pode mais cobrar PIS e Cofins sobre o ICMS destacado na nota fiscal. Assim, o órgão terá que rever procedimentos e resoluções, como a solução de consulta 13/2018, que dispõe que o ICMS a ser retirado na base de cálculo é o efetivamente recolhido, e não o destacado em nota fiscal.
Quanto ao impacto fiscal, ainda não há dados oficiais. No entanto, projeções feitas pela Instituição Fiscal Independente (IFI), entidade ligada ao Senado, indicam impacto de R$ 120,1 bilhões em 2021, o que significa 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, contando as compensações e as perdas de receita. A nota técnica destaca ainda que serão R$ 64,9 bilhões de perda de receita anualmente entre 2021 e 2030, o que pode significar um custo médio de 0,6% a 0,9% do PIB brasileiro.
Duplo ganho
O presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário e sócio fundador do Mauler Advogados, Igor Mauler Santiago, levanta ainda mais consequências do julgamento. Ele explica que da forma como está a decisão do STF, o contribuinte pode ter um duplo ganho. Segundo o raciocínio de Mauler, o Supremo mandou retirar o ICMS da base do PIS e da Cofins pago pelo contribuinte. No entanto, o cálculo do crédito não foi alterado pela decisão.
Dessa forma, o contribuinte vai fazer o desconto do ICMS pago indevidamente, mas, quando fizer o cálculo do crédito, como a lei 10.833/2003 define que o crédito é calculado sobre o preço ou valor do bem e do serviço, o ICMS estará embutido. De modo que o ressarcimento será um valor maior do que o pago, uma vez que foi retirado o ICMS da base do PIS e da Cofins, conforme determinou o Supremo, mas, para o crédito, a base continua com o ICMS incluso.
O tributarista acredita que a União deverá pleitear a mudança da lei para evitar essa situação. Será necessária, porém, alteração legislativa, que só valerá da alteração para a frente. “No débito, o STF já resolveu e disse que o contribuinte pode excluir [o ICMS do PIS e da Cofins]. No crédito, a lei diz ‘calcula-se pela aplicação da alíquota sobre o preço do bem, ou valor do bem ou serviço’. Ora, o ICMS integra o preço. Assim, por conta da redação da lei, hoje e no passado, o contribuinte tem esse duplo ganho”, analisa.
A controvérsia sobre o aproveitamento de créditos de PIS e COFINS sobre o ICMS dos insumos chegou aos contribuintes antes mesmo da decisão do STF. O tributarista Vinícius Vicentin Caccavali, do escritório VBSO Advogados, explica que uma empresa cliente foi autuada pela Receita Federal em março de 2021 porque, seguindo aquilo que autorizava sua decisão judicial, estava excluindo o ICMS destacado nas notas de saída.
A Receita fez a autuação para exigir que o contribuinte excluísse o ICMS quando fosse apropriar créditos de PIS e Cofins sobre as suas entradas de insumos, alegando que ao retirar o ICMS da base de cálculo nas saídas para a apuração dos débitos, pelo princípio da não-cumulatividade, o mesmo procedimento deve ser adotado quando da apuração dos créditos. Ou seja, na visão da Receita, se o ICMS não integra a base de cálculo dos débitos, o mesmo procedimento deveria ser adotado para apuração de créditos.
“Qual é o grande problema? Isso gera insegurança para a compensação dos créditos reconhecidos judicialmente, pois não há certeza sobre o que será considerado pela Receita. Quando uma declaração de compensação não é homologada, além da cobrança do débito, acrescido de juros e a multa moratória de até 20%, ainda há aplicação de multa isolada de 50% sobre o valor do débito compensado. Então, quando a empresa for compensar seus créditos, ela corre o risco de, além da cobrança do débito, sofrer aplicação dessa multa de 50% sobre o valor do débito compensado”, afirma Caccavali.
“É esperado que a Receita não se contente com a derrota no Supremo e com a habilitação indiscriminada de créditos que não tenham precisão no cálculo. Então, assim, vão auditar com precisão os cálculos e vão – na minha expectativa – pedir documentos de como a empresa fez o cálculo, qual foi o tratamento que ela deu aos seus insumos etc.”, complementa o tributarista.
Insegurança
Outra consequência do julgamento que gera dúvidas aos contribuintes é quanto ao momento de declarar no Imposto de Renda os valores que serão compensados ou ressarcidos pelo ICMS pago indevidamente: será no momento do trânsito em julgado da decisão, no momento em que a Receita Federal reconhece os créditos ou no momento em que o crédito é efetivamente usado pela empresa? “Lá atrás esse valor saiu como despesa no Imposto de Renda e agora volta como receita, por isso, é preciso saber quando será declarado”, questiona Mauler.
A tributarista Tatiana Chiaradia, sócia do Cândido Martins Advogados, afirma que a modulação do Supremo no caso sobre o ICMS na base do PIS e da Cofins gerou insegurança para os contribuintes que ingressaram com ação depois de 15 de março de 2017. Segundo ela, a modulação trouxe duas situações. A primeira diz respeito àqueles contribuintes que não têm ação transitada em julgado. Neste caso, eles poderão obter apenas a restituição dos valores pagos indevidamente a partir de março de 2017.
No entanto, a preocupação está com um segundo grupo, que entrou com ação depois de 2017 e conseguiu o trânsito em julgado e a habilitação do crédito sobre o valor destacado na nota. “O problema vai estar no período que ele pode aproveitar. Pela decisão do STF a ação dele, como foi posterior a 2017, só teria direito de recuperar a partir de 2017. Mas como ele tem trânsito em julgado vai ter o conflito da coisa julgada e o risco de rescisão da coisa julgada”, explica.
Tatiana cita como exemplo uma ação com o trânsito em julgado em 2018, na qual o contribuinte tem o direito de recuperar 15 anos para trás. Segundo ela, caberia uma ação rescisória para desconstituir a decisão porque existe uma previsão no novo Código de Processo Civil que determina que decisões do STF e do STJ podem ser observadas a qualquer tempo, mesmo depois dos dois anos do prazo para entrar com ação rescisória.
“Nós advogados entendemos que a coisa julgada, a segurança jurídica, deve prevalecer. Então, se a pessoa tem uma decisão transitada em julgado em 2018 e fez tudo dentro do sistema, das regras vigentes naquele período, ela não poderia ser prejudicada. Esperamos que a Fazenda se comporte assim daqui para a frente e não vá desenterrar casos neste exemplo”, explica.
Teses filhotes
A partir do julgamento da exclusão da base de cálculo do PIS e da Cofins, outras discussões sobre a retirada de tributos da base de outros tributos ganham fôlego. Um exemplo é a retirada do ISS do PIS e da Cofins, que consta no RE 592.616. Dados da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 estimam impacto fiscal de R$ 6,1 bilhões por ano e R$ 32,3 bilhões em cinco anos.
Outra tese que pode ser impactada é o ICMS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB). Em fevereiro, o Supremo definiu que é constitucional a inclusão do ICMS na CPRB. O entendimento evita, segundo cálculos da PGFN, que a União tenha que restituir R$ 9 bilhões aos contribuintes. A discussão ocorreu no recurso extraordinário 1187264.
A tributarista Valdirene Lopes Franhani, sócia do escritório Lopes Franhani Advogados e presidente da Comissão de Empresas da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat), ajudou na elaboração dos embargos contrários à inclusão do ICMS na base da CPRB. Entre os pedidos trazidos nos embargos está a revisão do entendimento firmado. “A fotografia do Supremo em fevereiro é diferente da fotografia de hoje. Em fevereiro ainda pairava uma dúvida se o Supremo ia reconhecer a tese do PIS/Cofins como válida. Agora o Supremo manteve o entendimento que não é receita”.
Valdirene explica que a orientação que ela tem dado aos clientes é a de não desistir da discussão, pois há a probabilidade de revisão ou modulação.
Outra tese é a exclusão do PIS e da Cofins em suas próprias bases de cálculo. A 11ª Vara Cível Federal de São Paulo, por exemplo, no último dia 7 de junho, reconheceu o direito das empresas Americana Franquia S.A. Star Participações S.A, Starbucks Brasil Comércio de Cafés Ltda e Southrock Capital Ltda, de não incluir o valor da contribuição ao PIS e a Cofins em suas próprias bases de cálculo. A discussão ocorre no mandado de segurança cível 5021643-39.2020.4.03.6100.
Ressarcimento aos consumidores
Com a possibilidade de as empresas terem de volta os valores pagos indevidamente de PIS e Cofins surgiu uma corrente defendendo que os valores devem ser repassados aos consumidores, especialmente em setores regulados, como energia elétrica.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) informou que no setor são mais de R$ 50,1 bilhões em créditos tributários referentes à decisão de retirada do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Segundo informações da agência, até agosto de 2020, de 53 concessionárias de distribuição, 49 ingressaram em juízo contra a Fazenda Nacional. Entre as ações que já transitaram em julgado, R$ 26,5 bilhões já foram habilitados na Receita Federal, R$ 7,8 bilhões ainda não possuem habilitação e R$ 1,2 bilhão estão depositados em juízo. Estima-se o valor de R$ 14,6 bilhões para ações que estão em andamento.
Para saber como se dará a devolução dos valores aos consumidores, a Aneel abriu uma consulta pública sobre o tema e agora está analisando as contribuições recebidas. Em 2020, a diretoria da Aneel adiantou a devolução de mais de R$ 700 milhões aos consumidores da Cemig. O reajuste da EDP Espírito Santo de 2020 também adiantou a devolução dos recursos.
No setor de telefonia, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) informou que a resolução sobre os direitos dos consumidores de serviços de telecomunicações não dispõe sobre devolução de tributos. “Porém, para a telefonia fixa prestada em regime de concessão, os contratos celebrados com as concessionárias admitem o repasse de ganhos econômicos não decorrentes de eficiência empresarial nas tarifas finais aos usuários deste serviço. A agência está avaliando a questão”, respondeu, via nota, ao JOTA.
Na análise de Mauro Silva, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Brasil (Unafisco), os valores de tributos pagos indevidamente foram calculados nos preços pagos pelos consumidores. Dessa forma, o ressarcimento deve ser feito aos consumidores, e não só de serviços regulados. “Do ponto de vista econômico, os tributos indiretos são repassados aos consumidores. As empresas suportam os tributos diretos, como o IRPJ e a CSLL. Os tributos indiretos são colocados nos preços e quem paga é o consumidor”, explica.
“Enquanto o PIS e a Cofins estavam majorados por considerar dentro da sua base de cálculo do ICMS, isso foi colocado no preço e repassado ao consumidor. Não foram as empresas que suportaram. Se agora elas vão pegar de volta esse valor, esse valor não pertence às empresas, é um enriquecimento ilícito”, complementa.