A segunda abertura brasileira
Publicado em:
Quinze anos depois da primeira liberalização comercial, um desafio semelhante se coloca ao país — promover um novo choque de globalização ou ficar para trás na corrida pelo desenvolvimento
EXAME Há exatos 15 anos, o Brasil começava a enterrar uma arraigada tradição de isolamento e, timidamente, ensaiava os primeiros passos na trilha da globalização. Ao promover um corte sensível nas alíquotas de importação e banir uma lista de 1 200 produtos proibidos de entrar no país, o ex-presidente Fernando Collor de Mello colocou a economia brasileira na rota de outras nações — como Coréia do Sul, Espanha ou Chile — que já haviam abandonado o ideário protecionista e colhiam um prêmio na forma de mais emprego, renda e produção. Desde então, vários outros países decidiram adentrar o barco da globalização e também se beneficiar da abertura de mercados. Lamentavelmente, porém, o Brasil se contentou com o movimento dos anos 90, e praticamente nada fez.
O país está atrasado — e muito — quando o assunto é globalização. As exportações brasileiras representam apenas 1,1% do total do mundo. As barreiras comerciais ainda estão entre as mais altas. O país não conta com um único acordo de livre comércio para valer (o Mercosul nem sequer é considerado como zona de livre comércio). No ranking dos países mais globalizados, elaborado pela consultoria A.T. Kearney, o Brasil ocupa um modestíssimo 57o lugar numa lista de 62 nações. “É preciso ser realista e constatar que, apesar da abertura dos anos 90, o Brasil continua irrelevante no comércio internacional”, diz o economista Armando Castelar Pinheiro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Uma segunda abertura é urgente.”
O tema da globalização se impõe na agenda nacional por uma combinação de necessidade com oportunidade. Está cada vez mais nítida a percepção de que a economia brasileira precisa mudar — e rápido. Há dez anos o Brasil cresce menos que a média mundial, e assustadoramente menos que os países emergentes mais pujantes, como Índia e China. Diante de um mundo que passa por uma fase sem igual de prosperidade, os economistas brasileiros atualmente discutem se o país conseguirá crescer míseros 3% neste ano. “Por sermos tão fechados, estamos ficando de fora da festa”, diz o economista José Alexandre Scheinkman, da Universidade Princeton. É aí que surge a oportunidade — o encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC), que reunirá representantes de 148 países entre 13 e 18 de dezembro em Hong Kong para discutir uma nova rodada de liberalização do comércio mundial (leia reportagem na página 24). Independentemente dos resultados concretos a ser obtidos na reunião — por enquanto, a probabilidade de que haja acordo entre tantos membros parece pequena –, trata-se de uma excelente chance para que os brasileiros comecem a se questionar seriamente sobre o que pretendem, afinal, em sua relação com o mundo. “Mesmo que a reunião de Hong Kong termine mal, o Brasil tem de estabelecer rapidamente uma estratégia para reverter o atraso de sua integração econômica com o resto do mundo”, afirma Simão Davi Silber, professor de economia internacional da USP.
Uma parcela do atual governo parece ter entendido a necessidade de um novo avanço no front externo. Um documen to vazado recentemente para a imprensa mostrou a disposição do Ministério da Fazenda em cortar de 35% para 10,5% as alíquotas máximas de impostos de importação de produtos industrializados. O Itamaraty também trabalha com a hipótese de corte agressivo nas barreiras protecionistas, desde que acompanhado de um movimento semelhante nos mercados agrícolas do mundo desenvolvido.
Apesar da eterna grita de alguns diante da possibilidade de maior liberalização, até representantes dos setores mais protegidos do país, como o automobilístico, já se convenceram de sua necessidade. “Sou totalmente favorável a uma nova rodada de abertura”, afirma Antonio Maciel Neto, presidente da Ford para a América Latina. “Quero exportar muito mais, e, embora pareça paradoxal, só é possível exportar mais se também importarmos mais.”
A frase de Maciel traduz a essência do funcionamento dos mercados globalizados. “Hoje, país com economia saudável é aquele que exporta muito, mas que também importa muito”, afirma o economista Celso Toledo, da MCM Consultores. Isso ocorre porque a abertura ao comércio internacional promove uma espécie de seleção natural nos setores produtivos das nações. Sem ter de pagar altas tarifas, as melhores empresas do mundo passam a vender seus produtos nos mercados que se abrem. Isso faz com que só sobrevivam os segmentos domésticos mais eficientes. A regra é vender aquilo que se faz com competência e comprar o que a produção doméstica não entrega de maneira competitiva. “Em última instância, essa seleção natural provoca uma alocação mais eficiente de recursos, ou seja, os empreendedores investem nos setores sobreviventes e, portanto, mais competitivos, tornando toda a economia mais próspera”, afirma Nathan Blanche, sócio da consultoria Tendências. Não por acaso países com maior grau de abertura comercial são também os que apresentam um crescimento econômico mais vigoroso.
O estímulo à competitividade tem conseqüência direta sobre os preços dos produtos em circulação na economia. A própria experiência brasileira dos anos 90 mostra isso. No caso de TVs e equipamentos de som, por exemplo, a queda atingiu impressionantes 66%. “O consumidor é provavelmente quem mais sai ganhando com a liberalização”, diz a economista Maria Cristina Terra, da Fundação Getulio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro. Ela acaba de concluir um trabalho, em conjunto com outros dois economistas, Gustavo Gonzaga e Naércio Menezes, em que mostra que a abertura econômica dos anos 90 teve um impacto muito importante sobre a desigualdade social no Brasil. “A concentração de renda só não aumentou porque o país se abriu”, diz. “A população mais pobre foi a mais beneficiada.” Também as empresas se beneficiam do acesso a bens mais baratos. Antes da abertura dos anos 90, a importação de máquinas modernas era simplesmente inacessível à maioria das companhias brasileiras. A redução das barreiras forçou uma queda de quase 50% no preço dos bens de capital — ou seja, o custo do investimento despencou. Isso induziu uma onda de modernização e fez a produtividade na indústria da transformação sextuplicar (veja quadro na página 22). “O fluxo livre de comércio faz com que a tecnologia seja transferida para os países mais pobres, e isso impulsiona a eficiência em todo o globo”, afirma Silber, da USP. Um exemplo é a fábrica baiana da Ford, em Camaçari. Inaugurada no final de 2001, a unidade é uma das mais produtivas da montadora em todo o mundo. A maioria das máquinas e equipamentos é importada, mas aos poucos a tecnologia começa a ser dominada por brasileiros — todos os robôs importados foram montados por equipes locais. “Pode parecer pouco, mas esse contato com novidades é fundamental para o avanço tecnológico do país”, afirma Silber.
Se a abertura ajuda as empresas a ter acesso a produtos de fora, vale o raciocínio oposto. Para muitas companhias brasileiras, o mercado doméstico ficou pequeno demais. A Embraer, por exemplo, relaciona-se com dezenas de fornecedores estrangeiros e vende seus aviões a companhias aéreas de todo o mundo. Outra empresa brasileira que pegou a mão dupla da globalização é a catarinense Embraco, maior fabricante mundial de compressores para refrigeração. A companhia começou a exportar compressores de geladeira ainda na década de 70, mas no início dos anos 90 decidiu se internacionalizar. “Já tínhamos alcançado importância por meio de exportações, mas a presença apenas no Brasil reprimiria nosso crescimento”, afirma Ernesto Heinzelmann, presidente da Embraco. “Não conseguiríamos avançar mais com a estrutura fabril montada apenas no Brasil.” Em 1994, a Embraco abriu uma fábrica na Itália. Em 1995 fez o mesmo na China e, três anos depois, na Eslováquia. A internacionalização da empresa foi decisiva para que ela despertasse o interesse do grupo americano Whirlpool, que, em 1998, tornou-se seu acionista majoritário.
Uma maior exposição brasileira à globalização teria ainda uma vantagem adicional: diminuir a vulnerabilidade da economia frente às flutuações do mundo exterior. Ao longo dos últimos anos, a volatilidade dos indicadores econômicos, particularmente da taxa de câmbio, foi um dos pontos que mais dificultaram a vida dos administradores, tanto nas empresas como no governo. O valor do real sofre flutuações abruptas, variando de acordo com os humores dos mercados financeiros — o dólar já custou menos de 1 real em 1994, 4 reais em 2002 e atualmente oscila na faixa de 2,2 reais. O paradoxo nesse campo é que, por ser pouco aberto ao comércio internacional, o país fica mais, não menos, vulnerável às oscilações do mercado. “A maioria das pessoas tende a achar o contrário, ou seja, que menos comércio externo torna o país mais defendido”, diz Terra, da FGV. “Mas ocorre o oposto.” A questão é que, em situações de crise externa, os investidores tendem a fugir dos países emergentes, o que induz a uma desvalorização da moeda local, normalmente seguida por alta dos juros e recessão. Essa desvalorização tende a ser muito menor em países com alto fluxo de comércio exterior. Um país como a China, que exporta 580 bilhões de dólares, depende menos do dinheiro volátil do que um país como o Brasil, que vende cerca de 115 bilhões de dólares lá fora. “Se a participação do comércio brasileiro crescer, também estaremos mais fortes na próxima crise”, diz Terra. “Por isso mesmo, é preciso apressar o passo.”