O Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação, de quaisquer Bens ou Direitos
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Luiz Fernando Mussolini Júnior*
Um caso de planejamento tributário "stricto sensu"
1) Dentro do amplo contexto das medidas de planejamento tributário. examinaremos objeto quase que atípico, pois que contido em espécie tributária que, o mais das vezes, tem como contribuintes os cidadãos e não as pessoas jurídicas.
Essa circunstância, todavia, não inibirá uma rápida análise das regras gerais acerca do imposto estadual comumente conhecido como ITCMD, com o que acreditamos transferir informações úteis aos cidadãos, e menos ainda impedirá que formulemos hipótese de planejamento tributário, em sentido estrito, envolvendo essa exação.
2) A Constituição Federal de 1988 outorgou competência aos Estados e ao Distrito Federal para instituir imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens e direitos (art. 155, I).
Tratando-se de bens imóveis e respectivos direitos, tem-se por competente a unidade federativa onde estiver localizado o bem (art. 155, § 1º, inc. I).
Se a transmissão ou doação tiver por objeto bem móvel, título ou crédito, será competente para exigir o tributo a unidade da Federação onde for processado o inventário ou arrolamento, isto em caso de morte do titular, ou aquele em que o doador tiver domicílio, em caso de transmissão em vida (art. 155, § 1º, inc. II).
A Lei Maior remeteu à legislação complementar a fixação de competência tributária para as situações em que o doador tiver domicílio ou residência no exterior e a pessoa falecida tinha bens fora do país, era domiciliada ou residente no exterior ou ali teve processado o seu inventário (art. 155, § 1º, inc. III, alíneas a e b).
Estabeleceu, ainda, a Constituição da República que as alíquotas máximas do ITCMD seriam fixadas pelo Senado Federal (art. 155, § 1º, inc. IV).
3) Inexiste lei complementar cumprindo a determinação expressamente posta no texto constitucional.
De outro lado, o Senado Federal aprovou a Resolução 9/92, estatuindo, em seu art. 1º, que a alíquota máxima do ITCMD é de 8% (oito por cento), isto a partir de 1º de janeiro de 1992.
4) No Estado de São Paulo hoje vigora a Lei nº 10.075/2000, com as alterações introduzidas pela Lei nº 10.992/2001.
Nos termos do seu art. 16, o ITCMD é calculado pela alíquota de 4% (quatro por cento) sobre o valor fixado como base imponível.
5) Vamos figurar a situação de um cidadão que ingressa na chamada "terceira idade", gozando boas condições de saúde, que lhe permitem uma expectativa de vida em torno de mais vinte anos, residente no Estado de São Paulo, com ascendentes já falecidos, que seja viúvo e tenha dois filhos, ambos solteiros e sem descendentes, que são, portanto, seus únicos herdeiros necessários, e a quem deseja aquinhoar, em partes iguais, a metade disponível de seu patrimônio.
Imagine-se que o conjunto dos seus bens seja constituído por um imóvel de grande porte, onde reside, no valor de R$ 2.800.000,00, com os respectivos móveis, adornos e utensílios domésticos, cujo montante estimado seja R$ 200.000,00, e mais aplicações em renda fixa de R$ 3.000.000,00, que lhe propiciam rendimentos mensais líquidos de R$ 24.000,00, que consome na manutenção do imóvel e com seus gastos pessoais.
Vindo a falecer inesperadamente, a transmissão de seu patrimônio aos seus filhos importaria na incidência do ITCMD à razão de 4% (quatro por cento) sobre a base imponível de R$ 6.000.000,00, sendo cada um deles, portanto, onerado com o pagamento de R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais).
Digamos que resolvesse fazer em vida a divisão de parte do patrimônio, vendendo o imóvel, com tudo o que o guarnecia, e doando aos filhos o resultado obtido, passando a residir um apartamento de menor porte, continuando a manter as mesmas e conservadoras aplicações, suficientes para o seu padrão de vida.
A doação implicaria no pagamento do ITCMD no total de R$ 120.000,00; quando morresse, a assunção, pelos filhos, do patrimônio sobrante (R$ 3.000.000,00), acarretaria a obrigação de recolhimento do mesmo montante (R$ 120.000,00) como imposto devido ao Estado de São Paulo.
6) Imagine-se que, não satisfeito com a perspectiva de ver o fruto do trabalho de toda uma vida, já fortemente taxado na sua constituição ao largo do tempo, ser ainda mais onerado ao final dos seus dias ou mesmo post mortem, esse cidadão resolva buscar um alternativa para que tanto não suceda.
Digamos que delibere se desfazer do imóvel, que além representar custosa mantença, é muito grande para as suas atuais necessidades e que aplique o numerário obtido (R$ 3.000.000,00), e mais ainda R$ 1.000.000,00 de suas inversões em renda fixa, na contratação de quatro seguros de vida, com prêmios de R$ 1.000.000,00 cada um deles, com diferentes e sólidos seguradores, instituindo seus filhos como beneficiários em partes iguais.
Admita-se que os capitais estipulados, em função da faixa etária do segurado e de seus hábitos de vida e condições de saúde, sejam de R$ 2.500.000,00 para cada seguro, totalizando R$ 10.000.000,00.
7) Nesta hipótese de seguro, o capital estipulado não se considera herança, para todos os efeitos de direito, por força do que dispõe o art. 794 do Código Civil Brasileiro.
Logo, com seu falecimento, o patrimônio a ser transferido causa mortis aos seus herdeiros necessários, estaria representado apenas pelo montante das aplicações em renda fixa que garantiam a subsistência do de cujus, que se conjectura fosse de R$ 1.000.000,00.
8) A significação da norma civil é clara é unívoca: o pagamento – feito pelo segurador, do capital contratado ao beneficiário de seguro de vida – não se caracteriza como forma de transferência patrimonial.
Como conseqüência, não se realiza, nesse caso, a hipótese tributária do ITCMD, desenhada nos artigos 2º, inc. I, e 3º incs. I, II e III, da Lei nº 10.075/2000, pelo singelo motivo de que, aqui, os herdeiros não terão havido, por sucessão, qualquer bem ou direito antes integrante do acervo do falecido.
Tanto é o que se infere, sem sombra de dúvida, das regras de incidência construídas a partir dos enunciados dos mencionados textos legais, que são os seguintes:
Artigo 2º – O imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido:
I – por sucessão legítima ou testamentária, inclusive a sucessão provisória;
Artigo 3º – Também sujeita-se ao imposto a transmissão de:
I – qualquer título ou direito representativo do patrimônio ou capital de sociedade e companhia, tais como ação, quota, quinhão, participação civil ou comercial, nacional ou estrangeira, bem como, direito societário, debênture, dividendo e crédito de qualquer natureza;
II – dinheiro, haver monetário em moeda nacional ou estrangeira e título que o represente, depósito bancário e crédito em conta corrente, depósito em caderneta de poupança e a prazo fixo, quota ou participação em fundo mútuo de ações, de renda fixa, de curto prazo, e qualquer outra aplicação financeira e de risco, seja qual for o prazo e a forma de garantia;
III – bem incorpóreo em geral, inclusive título e crédito que o represente, qualquer direito ou ação que tenha de ser exercido e direitos autorais.
De se ressaltar que, nesse ponto, constata-se plena observância, pelo legislador tributário paulista, do comando posto no art. 110 do Código Tributário Nacional, segundo o qual:
Art. 110 – A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
9) Temos, portanto, no quadro simulado, que por ato em vida ou pela morte, a transferência do patrimônio de R$ 6.000.000,00 acarretaria a obrigação tributária do ITCMD no montante de R$ 240.000,00, e que, caso contratados os seguros de vida pelo cidadão que deseja beneficiar seus filhos, reservando, outrossim, parcela suficiente para manter seu padrão de vida, estes seriam aquinhoados com capital de R$ 10.000.000,00 e mais o restante das aplicações financeiras existentes quando do falecimento (R$ 1.000.000,00), e que o tributo estadual recairia apenas sobre esta última parcela, representando R$ 40.000,00.
10) Poder-se-á dizer que é mórbido o cenário figurado; estamos cogitando, entretanto, da previsão dos efeitos de um evento que é inexorável, fazendo-o de forma estritamente racional.
Com efeito, a gênese da riqueza que imaginamos consiste em longo suceder de fatos, todos submetidos invariavelmente à brutal carga impositiva brasileira; tributaram-se, ao largo do tempo, os rendimentos e o consumo, circunstância que limitou a acumulação, tanto como foi gravado o seu resultado, o patrimônio construído.
Desta sorte, parece-nos humano e sensato o escopo de reduzir o ônus que recairá sobre a transferência para os sucessores.
11) O esquema projetado traduz, no nosso entendimento, exemplo singelo de planejamento tributário em sentido estrito, isto é, a prévia adoção de comportamento lícito, expressamente regulado pelo direito privado, objetivando que evento futuro e certo – a translação patrimonial por sucessão – seja concretizado por menor custo impositivo, por força de que o fato gerador do ITCMD somente se materializará quanto à transferência do saldo existente de aplicações em renda fixa.
Sua legitimidade, na acepção jurídica, repousa, em última análise, na premissa de representar plano validamente assumido pelo agente econômico privado, com a intenção de aumentar o monte de recursos a ser transferido aos seus herdeiros, racionalizando econômica e juridicamente a sua sucessão, não sem buscar a menor taxação possível dentro dos estreitos limites do sistema legal. Essa conduta tem lastro no princípio constitucional da liberdade de iniciativa e na garantia, também constitucional, da estrita legalidade tributária.
Em outras e mais simples palavras: ninguém é obrigado a organizar sua vida pessoal e seus negócios de maneira a sofrer maior incidência de tributos; em sentido contrário, pode fazer uso das formas estabelecidas pelo ordenamento no intuito de ser menos onerado pelas exações estatais.
12) A questão que se coloca, em giro contrário, navegando já na região cinzenta de tangência entre a elisão e a evasão fiscal, está em se o Fisco do Estado de São Paulo poderia desconsiderar a contratação dos seguros de vida pelo falecido, ao pretexto de ter sido concretizada tão só com o intuito de inibir a incidência do ITCMD, deduzindo pretensão de sua exigibilidade sobre os capitais recebidos pelos herdeiros, com arrimo no que preceitua o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, acrescentado pela Lei Complementar nº 104/2001, in verbis:
"A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária".
Em nosso Estado vigora a regra do artigo 84-A da Lei nº 6374/89, posto pela Lei nº 11.001/2001, com o seguinte enunciado:
A autoridade fiscal pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.)
Em primeiro passo, temos como duvidosa a juridicidade da norma que se extrai do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, introduzido pela LC nº 104/2001, à vista do princípio constitucional geral da segurança jurídica (a partir do qual, na dicção do emérito Prof. Paulo de Barros Carvalho, o sistema jurídico deve garantir previsibilidade, de tal sorte que os destinatários dos comandos jurídicos hão de poder organizar suas condutas na conformidade dos teores normativos existentes) e do princípio constitucional tributário da tipicidade fechada (que, como assevera o não menos ilustre Prof. Roque Antonio Carrazza, implica na correspondente proibição do emprego da discricionariedade fazendária).
Por issso mesmo é que a União e os demais Entes Tributantes, embora já decorrido tanto tempo, ainda não editaram as leis ordinárias próprias para estabelecer os procedimentos a serem observados pelas autoridades administrativas no mister de poder desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
Suepreendeu, nesse palno, o comportamento do Estado de São Paulo que, por meio da Lei nº 11.001, de 22 de dezembro de 2.001, somou o já referido dispositivo à lei básica do ICMS.
É flagrante a impropriedade técnica da regra em questão, quando menos porque, a despeito do comando expresso da Norma Geral de Direito Tributário contida no CTN, não estabeleceu, como era imprecindível fazer, quais os procedimentos a cuja observância deveriam estar adstritos os agentes fiscais para adotar as medidas excepcionais de desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados elos administrados.
Daí que o artigo 84-A da lei nº 6.374/89 não encontra fundamento de validade no sistema jurídico do direito posto, sendo certo que resultarão inócuas as iniciativas que nele procurarem respaldo, isto admitindo, apenas para argumentar, a constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional.
Despojada de técnica elementar e demais açodada que é a legislação paulista, sua aplicação – que, felizmente, ainda não ocorreu – fatalmente implicará em incontáveis arbitrariedades, cuja prática irá mais deteriorar o plano das relações entre o Fisco e os contribuintes, assoberbando o já quase asfixiado Poder Judiciário, em nada contribuindo para a segurança jurídica e o desenvolvimento sócio-econômico.
Se é juridicamente discutível a chamada "norma de anti-elisão fiscal" posta na Lei Tributária Maior, só pode ser lamentada a inimaginável pretensão de que seja aplicada tão precariamente, sem que ao menos antes sejam definam os procedimentos indispensáveis à utilização de instrumento com tal conteúdo de excepcionalidade.
13) Tanto seria suficiente para abortar qualquer iniciativa inspirada no parágrafo único do artigo 116 do CTN.
E não e só; o comportamento assumido – estipulação de seguros de vida com a instituição de herdeiros necessários como beneficiários – não carrega sequer resquício de simulação do fato gerador ou de quaisquer dos elementos da obrigação tributária do ITCMD. Tudo é realizado de maneira clara; a substância material das operações corresponde exatamente à forma jurídica eleita, isto é, a contratação de seguro de pessoa.
Mais ainda: as normas de incidência do ITCMD paulista são suficientemente claras no sentido de que o tributo alcança a transmissão mortis causa dos bens e direitos do sucedido, categoria em que não se inclui, por imperativo lógico e cabal determinação da lei civil, os capitais de seguros pagos aos herdeiros.
Luiz Fernando Mussolini Júnior*