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Fisco deve ter acesso a dados dos cidadãos

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Consultor Jurídico

Por Tânia Nigri

A Receita Federal não pode, por autoridade própria, acessar os dados bancários dos contribuintes. Essa foi a decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 389.808, ocorrido em 15 de dezembro de 2010.

A questão central do julgamento era a constitucionalidade da Lei Complementar 105/2001, regulamentada pelo Decreto 3.724/2001, que disciplina a quebra do sigilo bancário pela autoridade administrativa, tema que vem suscitando dúvidas e incertezas no Fisco e no contribuinte, já que o artigo 6° da mencionada lei permite à administração tributária o acesso aos documentos, registros e livros de instituições financeiras (desde que haja processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, e as informações sejam reputadas imprescindíveis), mas os tribunais e o próprio STF têm proferido decisões contraditórias, ora entendendo indispensável a intervenção de autoridade judiciária no acesso aos dados, ora facultando ao Fisco o seu descortinamento direto.

No caso levado ao Plenário, após ter sido comunicada pela instituição financeira em que mantinha conta-corrente, da determinação da Receita Federal para que fossem entregues extratos e documentos pertinentes à sua movimentação bancária, a GVA Indústria e Comércio impetrou Mandado de Segurança visando impedir a remessa das informações. A ordem foi denegada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e a decisão foi desafiada por Recurso Extraordinário.

Para evitar que durante o processamento de seu inconformismo, a Receita utilizasse as informações obtidas mediante a quebra administrativa do sigilo, foi apresentada medida cautelar junto ao STF, visando atribuir efeito suspensivo ao recurso, tendo sido a liminar deferida pelo ministro Marco Aurélio, nos seguintes termos:

“ AC 33-5/PR

RE 389.808/PR

Leia a decisão:

MED. CAUT. EM AÇÃO CAUTELAR 33-5 PARANÁ

RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

REQUERENTE(S): GVA INDÚSTRIA E COMÉRCIO S/A

ADVOGADO(A/S): JOSÉ CARLOS CAL GARCIA FILHO E OUTRO(A/S)

REQUERIDO(A/S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): PFN – DEYSI CRISTINA DA’ROLT

DECISÃO :JURISDIÇÃO – PODER DE CAUTELA.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO – EFICÁCIA SUSPENSIVA – LIMINAR – SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – AFASTAMENTO – RISCO – ARTIGO 6º DA LEI COMPLEMENTAR Nº 105/2001 – ARTIGOS 4º E 5º DO DECRETO Nº 3.724/2001 – CONSTITUCIONALIDADE DECLARADA – AÇÃO CAUTELAR – LIMINAR DEFERIDA.

1. Esta ação cautelar visa a imprimir efeito suspensivo a recurso extraordinário interposto e distribuído – Recurso Extraordinário nº 389.808. Chega a esta Corte o tema relativo à quebra do sigilo bancário pelo Fisco, a merecer reflexão maior ante o inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, no que revela como regra a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, contemplando exceção condicionada a ordem judicial.

Há de se preservar campo propício a possível decisão favorável à requerente e, portanto, ao pronunciamento do Supremo Tribunal Federal como guarda da Carta da República. Quebrado o sigilo por iniciativa do Fisco, parte na relação obrigacional tributária, e conhecido e provido o extraordinário, ter-se-á a ineficácia do provimento jurisdicional.

Por isso, surge quadro de excepcionalidade maior a direcionar ao empréstimo de terceiro efeito recursal. Aos efeitos de empecer a coisa julgada (José Carlos Barbosa Moreira) e devolutivo, tudo recomenda que se adite o da suspensão de eficácia do acórdão proferido, procedendo-se de forma ativa, ou seja, para afastar a quebra do sigilo, no que desprovida de ordem judicial.

2. Defiro a liminar pleiteada, obstaculizando, até a decisão final do extraordinário, o fornecimento de informações bancárias da requerente à Receita.

3. Dê-se ciência desta decisão à União, citando-a para o conhecimento da ação proposta. Caso já tenha havido o fornecimento das informações bancárias, observe-se o sigilo, congelando-se a obtenção dos dados, que não poderão ser acionados para os efeitos pretendidos.

4. Encaminhe-se, por fac-símile, o inteiro teor desta decisão à União e à Receita Federal, sem prejuízo da pessoalidade imposta por lei. Imprima-se urgência na degravação e revisão desta decisão.

5. Junte-se cópia deste ato ao processo em que interposto o Recurso Extraordinário nº 389.808/PR.

6. Publique-se.

Brasília, 5 de julho de 2003.

Ministro MARCO AURÉLIO
Relator”

Por ocasião do julgamento do mérito da cautelar, o que ocorreu sete anos após a concessão da liminar, mais precisamente em 24 de novembro de 2010, o relator relembrou ao Plenário que duas ações diretas de inconstitucionalidade questionando as mesmíssimas leis apontadas pela recorrente como inconstitucionais, pendiam de julgamento, sugerindo o debate do recurso a partir da análise das ações – o que não foi acatado pelos demais ministros, que optaram por analisar o mérito da cautelar apresentada.

Após um empate de dois votos a dois, o julgamento, que havia sido suspenso por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, então presidente do Supremo, foi retomado com o seu posicionamento no sentido de não ser absoluto o direito ao sigilo, devendo a quebra, entretanto, respeitar critérios de razoabilidade.

O ministro Dias Toffoli acompanhou o entendimento do presidente, asseverando que os dados bancários estão quase sempre sob a guarda de instituições privadas, que incorrem em crime se os divulgarem ao público e no caso julgado se trataria de transferência de dados sigilosos para órgão que tem a obrigação de manter sigilo, como determina a própria Lei Complementar 105/2001.

O ministro Lewandowski, reforçando a tese do relator, repeliu o acesso do órgão fiscalizador, sem a intervenção prévia do Poder Judiciário, que “tem seis mil magistrados para determinar a quebra do sigilo bancário quando necessário”.

O julgamento foi novamente interrompido pelo pedido de vista da ministra Ellen Gracie, que proferiu seu voto negando referendo à liminar nos seguintes termos:

“Tratando-se do acesso do Fisco às movimentações bancárias de contribuinte, não há que se falar em vedação da exposição da vida privada ao domínio público, pois isso não ocorre. Os dados ou informações passam da instituição financeira ao Fisco, mantendo-se o sigilo que os preserva do conhecimento público”.

O ministro Celso de Mello opinou pela manutenção do entendimento do relator, asseverando que a inviolabilidade do sigilo de dados tornaria indispensável que as exceções derrogatórias da prevalência desse postulado deveriam emanar sempre de órgãos estatais, dos órgãos do Poder Judiciário, ordinariamente, e das Comissões Parlamentares de Inquérito.

Concluído o julgamento, o STF, por maioria, deixou de referendar a medida liminar concedida pelo relator, o que equivale dizer, ter sido deferido o acesso direto da administração tributária sem a intervenção votando nesse sentido os ministros Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Ellen Gracie, ficando vencidos os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Cezar Peluso, que votaram pela manutenção da liminar.

Em 15 de dezembro de 2010, portanto menos de um mês após o julgamento do mérito da Cautelar, foi colocado em pauta o Recurso Extraordinário e o STF, por cinco votos a quatro, albergou posição contrária àquela proferida anteriormente, impossibilitando ao Fisco o acesso direto aos dados financeiros da recorrente.

O relator do recurso, ministro Marco Aurélio, ao votar pelo provimento do RE, na mesma linha de seus pronunciamentos anteriores, asseverou que o artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal assegura a inviolabilidade do sigilo das pessoas, só excepcionando a quebra emanada do Poder Judiciário, com ato fundamentado e finalidade de investigação criminal ou durante a instrução processual penal, e pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, finalizando que “a inviabilidade de se estender essa exceção resguarda o cidadão de atos extravagantes do Poder Público, atos que possam violar a dignidade do cidadão”.

Prosseguiu sua argumentação informando que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e que a vida em sociedade pressupõe a segurança e a estabilidade, mas não a surpresa, relembrando que, consoante o decidido no bojo do Mandado de Segurança 21.629, o MPF detém a possibilidade de quebra do sigilo bancário, desde que haja dinheiro público envolvido.

O ministro Celso de Mello seguiu entendimento do relator, asseverando que a função tutelar do Poder Judiciário investe apenas aos juízes e aos tribunais a exceção de postular sobre a violação do sigilo de dados, o que visa neutralizar eventuais abusos do Poder Público, acrescentando que a intervenção moderadora do Poder Judiciário é a garantia de respeito aos direitos e garantias fundamentais e à supremacia do interesse público.

O ministro Gilmar Mendes, que havia negado provimento à Ação Cautelar interposta pela GVA, permitindo a quebra do sigilo bancário pela Receita, mudou o seu entendimento, afirmando que no caso em exame deveria ser observada a reserva de jurisdição, posição albergada pelo ministro Ricardo Lewandowski e pelo presidente do STF, Cezar Peluso.

Dias Toffoli abriu divergência, ressaltando que “o caso é de transferência de dados sigilosos de um portador, que tem o dever de manter o sigilo, a outro portador, que deve manter o sigilo. Mesmo porque, a eventual divulgação desses dados fará incidir o tipo penal e permitirá todas as responsabilizações previstas em lei”. O ministro também mencionou em seu voto o parágrafo 1º do artigo 145 da Constituição, para afirmar que o contribuinte tem obrigação, por força de lei, de apresentar a declaração de seus bens.

O voto divergente do ministro Toffoli foi acompanhado pelos ministros Carlos Ayres Britto, Cármen Lúcia e Ellen Gracie.

Não obstante saibamos da limitação dos efeitos dessa última decisão ao caso concreto, não vinculando as instâncias inferiores, parece claro que, por se tratar de acórdão emanado do Tribunal Pleno da Corte Constitucional do país, ele certamente será o precedente seguido pela grande maioria dos juízes e tribunais, ao menos enquanto não modificado esse entendimento, o que poderá vir a ocorrer, já que os ministros Joaquim Barbosa, e Luiz Fux não participaram do julgamento do RE 389.808/PR.

A comprovar o alinhamento com o entendimento da Corte, mencione-se o teor do acórdão proferido pelo mesmo STF no RE 387.604/RS, da relatoria da ministra Cármen Lúcia, que, ao julgar questão similar, seguiu os passos da decisão lançada no RE 389.808/PR, desacolhendo o recurso fazendário e albergando a tese de que o sigilo bancário, como dimensão dos direitos à privacidade (artigo 5º inciso X da Constituição) e ao sigilo de dados (art. 5º, inciso XII, da Constituição) seria um direito fundamental, sob reserva legal, podendo ser quebrado no caso previsto no artigo 5º, inciso XII, ‘in fine’, ou quando colidir com outro constante da Constituição Federal.

A ministra, fazendo alusão ao posicionamento do STF, assinalou que é sempre imprescindível que o órgão que realiza o juízo de concordância entre os princípios, revista-se de imparcialidade, examinando o conflito como mediador neutro, estando alheio aos interesses em jogo. Por outro lado, ainda que se aceitasse a possibilidade de requisição extrajudicial de informações e documentos sigilosos, o direito à privacidade deveria prevalecer enquanto não houvesse outro interesse público, de índole constitucional, que não a mera arrecadação tributária.

A Lei Complementar 105/2001 comemora seus dez anos, período em que o STF vem sendo, repetidamente, instado a discutir a intrincada questão do acesso da administração tributária aos dados dos contribuintes. Não obstante a importância do tema para o país, não há, até o momento, um posicionamento claro e definitivo daquela Corte – há ali seis ações diretas de inconstitucionalidade[1] que questionam a compatibilidade da mencionada lei com a Constituição Federal, mas não há qualquer previsão de inclusão, de nenhuma delas, em pauta de julgamento, o que, se ocorresse, sepultaria de vez a questão, pacificando a relação entre Fisco e contribuintes.

É inquestionável que a prolação, pelo Plenário da mais alta corte do país, de duas decisões entre as mesmas partes em sentidos diametralmente opostos (na AC 33-5/PR foi permitido e no RE 389.808 foi proibido o acesso direto do Fisco aos dados bancários dos contribuintes), no interregno de apenas um mês, gera no administrado, no Fisco e por que não dizer, no próprio Judiciário, uma incontornável sensação de insegurança jurídica, que poderia (e deveria) ser evitada.

Investigar a movimentação financeira, mediante procedimento fiscal legalmente instaurado, não viola as garantias asseguradas constitucionalmente, configurando sim, estrito cumprimento à legislação tributária. Parece claro que os últimos julgados do STF vão de encontro aos anseios da própria Constituição, ao impedir que a administração tributária se utilize, quando necessário e nos exatos limites da lei, de importante ferramenta apta a diminuir as mazelas da injustiça fiscal.

Não se pode admitir, em nome de um suposto direito subjetivo dos contribuintes, que a administração tributária necessite obter autorizações judiciais para realizar adequadamente o seu munus. Acaso não tenha o Fisco a ampla possibilidade de identificar, nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas das pessoas físicas e jurídicas, não poderá tributar, a não ser na medida em que os contribuintes espontaneamente declarem os fatos tributáveis, interpretação que levaria ao absurdo de considerar o tributo, essencialmente uma prestação pecuniária compulsória, em prestação voluntária, ou uma mera colaboração do contribuinte prestada ao Tesouro [2], entendimento que não deverá, sob nenhuma hipótese prevalecer, sob pena de se obstar a correta aferição da capacidade contributiva dos cidadãos, com a consequente manutenção da injustiça fiscal que viceja nos dias de hoje.


[1] Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 2.386, 2.389, 2.390, 2.397, 2.406 e 4.006

[2] MACHADO, Hugo de Brito. Princípios constitucionais tributários. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). , p. 85-86.