Conflito de incidência ISS x ICMS na manipulação de medicamentos
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Pedro Gomes Miranda e Moreira*
O imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS) tem sua instituição legitimada pelo artigo 156, inciso III, da Constituição Federal e detém como fato gerador, apto a deflagrar a incidência do imposto, a prestação de serviços constantes da lista anexa à Lei Complementar número 116/2003.
A competência tributária ativa para a instituição do referido imposto, ademais, é atribuída constitucionalmente aos Municípios e ao Distrito Federal.
Ainda, por expresso mandamento constitucional (artigo 156, § 3º, I, CF/88) e com fulcro no artigo 88, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e artigo 8º, II, da Lei Complementar supracitada, as alíquotas do ISS, aplicáveis sobre o valor da prestação dos serviços, não poderão ser menores que o percentual de 2% (dois por cento) nem maiores que o percentual de 5% (cinco por cento)
Em contrapartida, o ICMS, imposto de competência estadual, tem como fatos imponíveis a circulação de mercadorias (hipótese de incidência que ora nos interessa), a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, a produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos e energia elétrica e a extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais, conforme arquétipo de tributação traçado pelo artigo 155 da Carta Constitucional.
Em linhas gerais, a alíquota do aludido imposto é na grande maioria dos Entes Estatais fixada no patamar de 18% (dezoito por cento) em operações internas e interestaduais cujo destinatário não seja contribuinte do imposto e de 12% (doze por cento) em operações interestaduais efetuadas entre contribuintes (comerciantes, atacadistas, revendedores), observando-se sempre a garantia constitucional da não-cumulatividade.
Dito isto, cumpre expor que certos Estados entendem pela incidência do ICMS sobre a atividade prestada por farmácias homeopáticas fornecedoras de produtos farmacêuticos, mediante atividade de manipulação realizada em caráter pessoal, através de encomenda, conforme a necessidade específica de cada consumidor.
Todavia, para que se afira qual das normas de incidência tributária sob análise deve incidir sobre referida atividade, é imprescindível analisar o conceito ofertado pela Constituição Federal à “prestação de serviços” e à “circulação de mercadorias”, operações as quais compõem o critério material de incidência, respectivamente, do ISS e do ICMS.
Pois bem.
A Carta Constitucional carreia implicitamente em seu texto o conceito de serviço cuja prestação na seara fática acarreta o nascimento da obrigação tributária e o dever do contribuinte de recolher o ISS em favor de dado Município.
Nesse passo, conforme a melhor interpretação sistemática da CF/88, somente pode ser passível de tributação pelo imposto municipal o serviço contemplado pelas seguintes características:
a) Existência de um contrato (relação jurídica bilateral) de prestação de serviço, atinente a um esforço humano exercido em benefício de outrem, sem relação de subordinação;
b) Onerosidade do serviço prestado;
c) A prestação tem como objeto principal uma obrigação de fazer (prestar um serviço em favor de outrem) e não uma obrigação de dar (fornecer um bem a outrem);
d) O serviço deve ser exercido no âmbito do direito comercial privado;
e) Previsão do serviço na Lista anexa da Lei Complementar número 116/2003.
As lições de Aires F. Barreto são precisas neste diapasão:
“Só é serviço tributável, destarte, o esforço humano com conteúdo econômico. Somente aqueles fatos que tenham real conteúdo econômico poderão ser erigidos em materialidade da hipótese de incidência do ISS, dado que é a dimensão econômica de cada fato que ira permitir que a sua ocorrência concreta dimensione, de alguma maneira, o tributo, e portanto, possa ser reconhecida com indício de capacidade contributiva.” (BARRETO, Aires F. “ISS na Constituição e na Lei. Dialética, 2003, p. 20.)
Por oportuno, traz-se trecho da doutrina de Paulo de Barros Carvalho sobre o assunto:
“(…) é forçoso reconhecer que a atividade realizada pelo prestador apresente-se sob a forma de “obrigação de fazer”. Eis aí outro elemento caracterizador da prestação de serviços. Só será possível a incidência do ISS se houver um negócio jurídico mediante o qual uma das partes se obrigue a praticar certa atividade, de natureza física ou intelectual recebendo, em troca, remuneração. Por outro ângulo, a incidência do ISS pressupõe atuação decorrente do dever de fazer algo até então inexistente, não sendo exigível quando se tratar de obrigação que imponha a mera entrega, permanente ou temporária, de alguma coisa que já existe.” (CARVALHO, Paulo de Barros. “Não-incidência do ISS sobre Atividades de Franquia (Franchising)”. RET 56/65, jul-ago/07.)
Noutro giro, em situação jurídica diametralmente oposta, encontra-se o critério material da regra matriz de incidência do ICMS, de relevância para o presente, correspondente à operação de “circulação de mercadoria”.
O conceito constitucional de “circulação”, apto a deflagrar a incidência do imposto estadual, é a mudança de titularidade de uma mercadoria (circulação jurídica), quando há uma efetiva transferência de direitos de disposição sobre o bem, acarretando a mudança de seu titular entre uma pessoa e outra.
Ademais, a incidência do ICMS pressupõe a transferência da posse ou da propriedade de uma “mercadoria”, entendida esta como um bem móvel, destinado a mercancia, que é transmitido habitualmente por um produtor/industrial/comerciante com a finalidade de distribuição para consumo, em nítido negócio jurídico de caráter comercial.
Resta inequívoco, assim, que referida operação, passível de tributação pelo imposto estadual, consiste em uma nítida “obrigação de dar”, no sentido de entregar um bem móvel já existente, destinado ao comércio, em favor de outrem.
Confira-se o quanto leciona o civilista Washington de Barros Monteiro sobre referidas obrigações:
“assim, se o devedor tem dar ou entregar alguma coisa, não tendo, porém, de fazê-lo previamente, a obrigação é de dar; todavia, se primeiramente tem ele de confeccionar a coisa para depois entregá-la, se tem de realizar algum ato, do qual será mero corolário o de dar, tecnicamente, a obrigação é de fazer.” (MONTEIRO, Washington de Barros in MELO, José Eduardo Soares de. “ICMS- Teoria e Prática”, Dialética, São Paulo, 2006, p. 66)
Desta feita, caso determinado sujeito deva fornecer a um terceiro um bem anteriormente existente, sem necessidade de empreender previamente um esforço humano para tanto, estar-se-á diante de uma obrigação de dar, passível a despontar a incidência do ICMS.
Já quando o sujeito empreende seu esforço e presta serviços para confeccionar o bem a fim de transmiti-lo posteriormente a outrem, revelar-se-á nítida obrigação de fazer, sujeita, via de regra, ao surgimento do dever de recolhimento apenas do ISS.
Os ensinamentos de Hugo de Brito Machado são claros neste diapasão. Veja-se:
“O âmbito constitucional do ISS é o serviço de qualquer natureza. O servir enquanto fazer. Não o dar. Por isto, o legislador complementar não pode validamente incluir na Lista de Serviços tributáveis pelos Municípios qualquer fato que não seja serviço (…).”
(MACHADO, Hugo de Brito. “Curso de Direito Tributário”, São Paulo, Malheiros, 2007, p. 422.)
Não se pode olvidar, outrossim, que o artigo 110 do Código Tributário Nacional é claro ao preceituar ser vedado à lei tributária alterar o conteúdo e o alcance de conceitos de direito privado para definição de competências tributárias.
Ademais, conforme o teor do artigo 1º, § 2º, da Lei Complementar 116/2003, quando determinado serviço seja previsto em sua lista, sem a expressa ressalva de incidência do ICMS sobre o fornecimento de mercadorias interligado com sua prestação, será devido unicamente o ISS.
Fixadas tais premissas, deve-se expor que o item 4.07 da Lei Complementar 116/2003 prevê expressamente a incidência exclusiva do imposto sobre serviços (ISS) sobre a prestação “serviços farmacêuticos”, sem fazer qualquer ressalva quanto à possibilidade de incidência do ICMS.
Nesse caminho, quando a atividade de manipulação é exercida em relação individualizada, mediante prévia encomenda, consoante situações específicas de cada um dos consumidores, está a mesma inserida unicamente no campo de incidência do ISS, por consistir em inconteste “obrigação de fazer”, agregando flagrante prestação de serviço ao terceiro como atividade fim do contribuinte.
Apesar disso, como ventilado anteriormente, certos Entes Federativos vêm constituindo débitos relativos ao ICMS de farmácias que se dedicam a prestação de serviços de manipulação de medicamentos nos moldes acima citados, o que claramente viola os preceitos legais de tributação trazidos pela legislação pertinente, posto que, segundo acima demonstrado, referido serviço amolda-se restritamente ao critério material da regra-matriz de incidência do imposto municipal.
Este posicionamento, do qual se discorda, acabou por ser apreciado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, sendo certo que o Colendo Tribunal, acertadamente, houve por bem deliberar expressamente pela incidência exclusiva do ISS sobre os serviços em tela, afastando a tributação do ICMS.
Veja-se a Ementa do julgado supracitado:
“Ementa: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. DELIMITAÇÃO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA ENTRE ESTADOS E MUNICÍPIOS. ICMS E ISSQN. CRITÉRIOS. SERVIÇOS FARMACÊUTICOS. MANIPULAÇÃO DE MEDICAMENTOS. SERVIÇOS INCLUÍDOS NA LISTA ANEXA À LC 116/03. INCIDÊNCIA DE ISSQN.
1. Segundo decorre do sistema normativo específico (art. 155, II, § 2º, IX, b e 156, III da CF, art. 2º, IV da LC 87/96 e art. 1º, § 2º da LC 116/03), a delimitação dos campos de competência tributária entre Estados e Municípios, relativamente a incidência de ICMS e de ISSQN, está submetida aos seguintes critérios: (a) sobre operações de circulação de mercadoria e sobre serviços de transporte interestadual e internacional e de comunicações incide ICMS; (b) sobre operações de prestação de serviços compreendidos na lista de que trata a LC 116/03, incide ISSQN; e (c) sobre operações mistas, assim entendidas as que agregam mercadorias e serviços, incide o ISSQN sempre que o serviço agregado estiver compreendido na lista de que trata a LC 116/03 e incide ICMS sempre que o serviço agregado não estiver previsto na referida lista. Precedentes de ambas as Turmas do STF. 2. Os serviços farmacêuticos constam do item 4.07 da lista anexa à LC 116/03 como serviços sujeitos à incidência do ISSQN. Assim, a partir da vigência dessa Lei, o fornecimento de medicamentos manipulados por farmácias, por constituir operação mista que agrega necessária e substancialmente a prestação de um típico serviço farmacêutico, não está sujeita a ICMS, mas a ISSQN. 3. Recurso provido.” (REsp 881035 / RS, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, Data do Julgamento: 06/03/2008) – (sem grifos no original)
Devido ao acima exposto, com supedâneo legal, doutrinário e jurisprudencial, conclui-se que a prestação de serviços de manipulação de medicamentos e seu fornecimento ao consumidor, mediante encomenda e manipulação personalizada da droga segundo a necessidade de cada paciente, encontra-se apenas no campo de incidência da regra jurídica de tributação do ISS, sendo inapropriado, assim, cogitar-se da incidência do ICMS sobre referida atividade.
Pedro Gomes Miranda e Moreira*