Logo Leandro e CIA

Escrituração contábil das empresas optantes pelo Simples Nacional

Publicado em:

Consultor Jurídico

 

Por Efigênio de Freitas Júnior e Thais de Laurentiis

O Simples Nacional é um regime simplificado e compartilhado de arrecadação, cobrança e fiscalização de tributos aplicável às microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP), previsto na Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, com as alterações legislativas que lhe sucederam [1].

Trata-se de regime jurídico criado à luz das diretrizes constitucionais, no sentido do necessário tratamento jurídico diferenciado a ser dispendido às microempresas e empresas de pequeno porte, tendo como norte o seu favorecimento, além da simplificação e da redução das suas obrigações fiscais, conforme dispõem os artigo 170, IX [2] e artigo 179 [3] da Constituição [4].

Tal tratamento constitucional “está em perfeita harmonia com o seu primado maior de isonomia na sua feição substancial: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades” [5].

É de fato importante o respaldo conferido pela Constituição de 1988 à temática, vis a vis da realidade do mercado brasileiro. Segundo os dados apresentados pelo Sebrae, juntas, as cerca de 9 milhões de micro e pequenas empresas no país representam 27% do PIB, sendo esse um resultado que vem crescendo nos últimos anos [6]. Tal realidade mostra-se cada vez mais relevante, não à toa o regime do Simples Nacional tem passado ileso na proposta de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional (PEC 45/2019).

Não é de se espantar, portanto, o importante número de processos administrativos fiscais, cuja matéria de fundo são normas atinentes ao Simples Nacional, que esteve e está em julgamento perante as Delegacias Regionais de Julgamento da Receita Federal (DRJ) [7] e perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Dentro desse contexto, no quotidiano de julgamentos da 1ª Seção do Carf, observamos a relevância do seguinte tema: a necessidade e o padrão de escrituração contábil das empresas optantes do regime, bem como a forma de cumprimento de obrigações fiscais acessórias. É o que buscaremos explorar na coluna de hoje, inclusive no sentido de bem orientar esse tão relevante nicho societário.

Ao cuidar das obrigações acessórias, a LC 123/2006, em seus artigos 26, §2º e 27, dispõe que as ME e as EPP optantes pelo Simples Nacional, dentre outras obrigações, devem manter a escrituração do Livro-Caixa para contabilizar a movimentação financeira e bancária e, opcionalmente, podem adotar contabilidade simplificada, conforme regulamentação do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN).

O CGSN [8], ao regulamentar a matéria, elenca uma série de livros obrigatórios à ME ou EPP optante pelo Simples Nacional — Livro-Caixa, Registro de Inventário, Registro de Entradas, Registro dos Serviços Prestados, Registro de Serviços Tomados, dentre outros — e estabelece que a escrituração contábil, em especial do Livro Diário e do Livro Razão, dispensa a apresentação do Livro-Caixa.

Dispõe ainda o CGSN que a ME ou EPP no regime do Simples Nacional poderá, opcionalmente, adotar contabilidade simplificada para os registros e controles das operações realizadas, atendendo-se às disposições previstas no Código Civil e nas Normas Brasileiras de Contabilidade editadas pelo Conselho Federal de Contabilidade (artigo 63 e 71). Todavia, não detalha o que seria tal escrituração simplificada.

Por sua vez, a Receita Federal, por meio da Solução de Consulta Cosit nº 444, de 2017, dispõe que a adoção da contabilidade simplificada pela ME ou pela EPP optante pelo Simples Nacional não implica dispensa de apresentação dos demais livros contábeis e fiscais exigidos na legislação. Observa ainda, a título informativo, que os critérios e procedimentos da escrituração simplificada encontram-se disciplinados na Interpretação Técnica Geral (ITG) —1000 — Modelo Contábil para ME e EPP, aprovada pela Resolução do Conselho Federal de Contabilidade (CFC) nº 1.418, de 2012.

Segundo o CFC, a adoção da ITG 1000 não desobriga a ME e EPP de manter a escrituração contábil uniforme dos seus atos e fatos administrativos que provocaram, ou possam vir a provocar, alteração do seu patrimônio.

Nesse sentido, a referida ITG 1000 estabelece que os lançamentos contábeis no Livro Diário devem ser feitos diariamente, permitindo-se, contudo, que os lançamentos sejam feitos ao final de cada mês. Estabelece ainda a obrigação de elaborar Balanço Patrimonial, Demonstração do Resultado e notas explicativas ao final de cada exercício social e plano de contas simplificado com no mínimo quatro níveis.

Em janeiro de 2023, a Resolução nº 2021/NBC TG1 002[9] aprovou a NBC (Norma Brasileira de Contabilidade) TG 1002 que revogou a referida Resolução CFC nº 1.418, de 2012.

Nos termos da NBC TG 1002, as microentidades [10] — organizações com finalidade de lucros, com receita bruta até R$ 4,8 milhões por ano — continuam obrigadas a representar nas demonstrações contábeis a posição patrimonial e financeira (balanço patrimonial) e o desempenho operacional (demonstração do resultado). Tais demonstrações devem ser elaboradas para fins gerais pelo Regime de Competência (exceto o fluxo de caixa), com base nos eventos e decisões ocorridos dentro de um período específico ou exercício social e tem por objetivo apresentar informações úteis e de uso geral para diversos usuários.

Como se vê, o fato de a Lei Complementar nº 123/2006 permitir à ME e à EPP, opcionalmente, adotarem contabilidade simplificada para os registros e controles das operações realizadas não significa permissão para elaborar registros livres e desprovidos de um mínimo de formalidade das operações efetuadas. Na verdade, a contabilidade simplificada, no caso em análise, contém mais informações que o Livro-Caixa, corretamente escriturado.

Pois bem. Cumpre então realçar que a falta de escrituração do Livro-Caixa ou a sua escrituração sem a identificação da movimentação financeira, inclusive bancária, configura motivo para exclusão do Simples Nacional (cf. artigo 29, VIII da LV 123/2006).

Excluído do Simples Nacional, o contribuinte deve ser intimado a informar qual o novo regime de tributação que optará; bem como deve ser concedido prazo para regularizar/apresentar a documentação contábil ou Livro-Caixa, no caso de opção pelo lucro presumido.

Tal intimação faz-se necessária porquanto, ressalvada a hipótese de atividade obrigada à apuração da renda pelo lucro real (vide artigo 14 da Lei nº 9.718/1998), é opção do contribuinte escolher o regime de tributação a que se submeterá: real ou presumido. Nesse sentido, não cabe à autoridade fiscal conjecturar sobre o melhor regime para o contribuinte, conforme depreende-se da inteligência do artigo 32, §2º da Lei Complementar nº 123, de 2006.

O direito à referida opção já foi ratificado pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais em algumas ocasiões, das quais destacamos o Acórdão nº 9101-003.644, de 3 de julho de 2018, o qual afirma que “o arbitramento de lucros, por desclassificação da escrita contábil, é procedimento que exige a prévia intimação do contribuinte de forma clara e objetiva, concedendo-lhe prazo razoável para a sua regularização”.

Nesse contexto, caso o contribuinte não mantenha escrituração na forma das leis comerciais e fiscais (lucro real); contabilidade simplificada (NBC TG 1002) ou Livro-Caixa escriturado com toda a movimentação financeira, inclusive bancária (lucro presumido), estará sujeito ao arbitramento, com base no artigo 47 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1985.

Acerca do tema em análise, citamos a título de exemplo, alguns julgados que demonstram o posicionamento do Carf: Acórdão nº 1302-005.382, de 15/4/2021, relatora Andréia Lúcia Machado Mourão; Acórdão nº 1201-004.879, de 20/5/2021, relator Efigênio de Freitas Júnior; Acórdão nº 1401-005.734, de 22/7/2021, relator: Daniel Ribeiro Silva; Acórdão nº 1201-005.791, de 15/3/2023, relatora Thais De Laurentiis Galkowicz.

Verifica-se, pois, que o contribuinte optante pelo Simples Nacional deve escriturar, no mínimo, o Livro-Caixa de forma que permita identificar a movimentação financeira, inclusive bancária, com vistas a evitar a exclusão de ofício do regime simplificado (LC 123/2006, artigo 29, VIII) e, em último caso, o arbitramento do lucro.

Oportuno ressaltar que a apresentação de livros e documentos após o lançamento tributário de ofício não invalida a tributação na sistemática do lucro arbitrado, conforme já solidificado pela Súmula CARF nº 59 [11], de 29 de novembro de 2010.

Vistas as normas que regem a necessidade de escrituração contábil por parte das empresas do Simples Nacional, cumpre trazer à baila algumas considerações sobre o contexto desse nicho empresarial. Em comparação com as empresas de maior porte, são significativas as desvantagens da ME e EPP. Dentre outras, temos: 1) altos custos para obtenção de financiamento; 2) dificuldade e desproporcional despesa com custos administrativos para o cumprimento das diversas obrigações legais, inclusive tributárias; 3) dificuldades para obter informações sobre novas tecnologias [12]4) por vezes, a diminuta experiência na gestão administrativa, financeira e mercadológica; 5) dificuldade de acesso a consultorias tributárias especializadas, o que, no intuito de redução de custos e/ou despesas, pode eventualmente gerar planejamentos tributários rechaçados pela ordem jurídica, cuja consequência pode levar à lavratura de autos de infração para cobrança de tributos, multas e imputação de responsabilidade tributária solidária às pessoas físicas e jurídicas envolvidas nos fatos (vide Acórdãos 1201-006.021, de 21/7/2023; 1201-006.023, de 21/7/2023; 1301­002.755, de 22/9/2018; 1201­002.695, de 13/12/2018; 1201-005.710, de 15/12/2022; 1301-005.781, de 19/10/2021; 9101-004.854, de 05/3/2020; 1402-005.466, de 18/3/2021; 1401-006.073, de 19/11/2021; 1302-005.713, de 13/9/2021).

Dessarte, a pergunta que se coloca é se a atual regulamentação acerca da escrituração contábil das empresas optantes pelo Simples Nacional é suficiente para contrabalancear tamanho desnível competitivo. Para tal análise, de um lado da balança deve-se colocar o interesse público, espelhado no dever de a Fiscalização proceder o lançamento tributário uma vez constatada a ocorrência do fato gerador da obrigação fiscal, o que só pode ocorrer mediante a existência de documentação contábil hábil para tanto. Do outro lado da balança, temos os mandamentos constitucionais já citados no início do presente estudo, além de uma gama de outros (e.g. livre concorrência e busca do pleno emprego), sempre guiando o sistema jurídico no sentido de fortalecer a promover os pequenos negócios.

[1] Sobre as alterações legislativas, ver: MENDES, Guilherme Adolfo e SILVA, Rafael Ragazzo Pacheco. Tratamento favorecido para pequenas empresas: inovações da lei complementar 147/2014. Revista da Receita Federal: estudos tributários e aduaneiros, 1 (jan/jul. 2015), 285-305. Disponível em:

https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/revistas/revista-da-receita-federal/2015-revista-de-estudos-tributarios-e-aduaneiros-da-receita-federal-1.pdf

[2] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…) IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

[3] Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

[4] Além desses, outros dispositivos foram trazidos por meio de emendas constitucionais, no sentindo de outorgar competências para a implementação do regime diferenciado, quais sejam: art. 146, III, “d” e parágrafo único e seus incisos; art. 94 do ADCT; e art. 195, § 9º da CF.

[5] MENDES, Guilherme Adolfo dos Santos. Simples Nacional: análise da constitucionalidade das exclusões setoriais. In: III Encontro de Internacionalização do Conpedi: Participação, Democracia e Cidadania na perspectiva do Direito Iberoamericano, 2015, Madrid. III Encontro de Internacionalização do Conpedi: Participação, Democracia e Cidadania na perspectiva do Direito Iberoamericano. Florianópolis: Conpedi, 2015. p. 110.

[6] https://sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/mt/noticias/micro-e-pequenas-empresas-geram-27-do-pib-do-brasil,ad0fc70646467410VgnVCM2000003c74010aRCRD#:~:text=Juntas%2C%20as%20cerca%20de%209,presidente%20do%20Sebrae%2C%20Luiz%20Barretto.

[7] Que hoje é, inclusive, a segunda instância administrativa para processos de pequeno valor, vale dizer, aqueles envolvendo causas inferiores a sessenta salários-mínimos (Cf. art. 23, I da Lei nº 13.988/2020 e da Portaria MF nº 20/2023).

[8] Resolução CGSN nº 140, de 22 de maio de 2018.

[9] Esta norma aplica-se aos trabalhos referentes aos exercícios sociais iniciados a partir de 1º de janeiro de 2023, permitida a adoção antecipada para o exercício iniciado a partir de 1º de janeiro de 2022 e revoga a ITG 1000, aprovada pela Resolução CFC n.º 1.418/2012, publicada no DOU, Seção 1, de 21/12/2012, e a OTG 1000, aprovada em 21/10/2015.

[10] Nos termos do art. 3º da Lei Complementar nº 123, de 2006, considera-se microempresa aquela que aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais); e, no caso de empresa de pequeno porte, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e oitocentos mil reais). (Redação dada pela Lei Complementar nº 155, de 2016).

[11] Súmula Carf nº 59: A tributação do lucro na sistemática do lucro arbitrado não é invalidada pela apresentação, posterior ao lançamento, de livros e documentos imprescindíveis para a apuração do crédito tributário que, após regular intimação, deixaram de ser exibidos durante o procedimento fiscal. (Vinculante, conforme Portaria MF nº 277, de 7/6/2018, DOU de 08/06/2018).

[12] OECD (OCDE). Taxations and Small Businesses. Paris, OECD, 1994