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O negócio fiduciário e a recuperação judicial

Publicado em:

Valor Online

Glauber M. Talavera

Trilhando o compasso de evolução da tecnologia jurídica, sedimentou-se no mercado uma nova dinâmica negocial que evidencia o anacronismo dos instrumentos clássicos de garantia e, ao mesmo tempo, envida esforços para adequá-los à velocidade das operações bancárias e financeiras sem prescindir da segurança compatível com os riscos que lhes são próprios e, sobretudo, com o grau de incerteza de seu adimplemento.

A escalada de construção de prodigiosas espécies de "covenants" – "cross default", "negative pledge", "ownership clause", "pari passu" etc. – cada vez mais categóricos demonstra a inquietude dos mutuantes face aos prognósticos pouco alvissareiros na instrumentalização dos seus contratos com estas garantias tradicionais.
O penhor mostrou-se relativamente inconveniente por implicar na efetiva entrega do bem móvel empenhado, importando em uma espécie de renúncia à sua posse, ainda que provisória, por parte do devedor. Mesmo ressalvando-se deste regramento o penhor rural, industrial, mercantil e de veículos, o instituto ainda apresenta contornos antiquados que denunciam sua obsolescência. A hipoteca, que não padece do mesmo inconveniente do penhor, tem, contudo, um campo de incidência notadamente diminuto – restrito aos bens imóveis e equiparados como aeronaves, navios e estradas de ferro -, além de apresentar desvantagens relacionadas a custos e morosidade na sua execução. Configurando-se como uma simbiose de penhor e hipoteca, a anticrese, a seu turno, é uma garantia real cuja utilização é nenhuma, tendo-se em vista que acarreta a transferência da posse de um bem imóvel ao credor para que ele o administre e dele usufrua, colhendo os frutos percebidos, até ser integralmente paga a dívida que o devedor anticrético tem para com ele.
A escalada evolutiva dos instrumentos de garantia das relações jurídicas tem seu marco inaugural no advento da compra e venda com reserva de domínio, pela qual um bem adquirido mediante um financiamento permanece na propriedade do credor até que o saldo devedor do adquirente financiado seja integralmente liquidado. Caso contrário, a solução é a venda judicial do bem para amortização do saldo devedor, hipótese deveras combalida mormente por ser considerada sobremaneira lenta e sujeita a trâmites cartoriais marcados pelo excesso de formalidades.
O aprimoramento dos instrumentos de garantia das obrigações jurídicas assumidas pelo devedor, causa direta da dinamização e expansão do mercado de crédito, fora robustecido a partir da inclusão do negócio fiduciário entre as modalidades de garantia. A propriedade fiduciária é constituída mediante transferência da propriedade resolúvel e da posse indireta de bem imóvel infungível efetuada pelo devedor em benefício do credor, como expressão de garantia do integral adimplemento de seu débito. O devedor fiduciante, por sua vez, permanece com a posse direta do bem e como depositário da coisa.


Ao se fortalecer de forma injusta a posição da empresa em recuperação judicial, desprestigia-se a higidez do crédito


O negócio fiduciário, inspirado no "trust" dos sistemas da "common law", foi instituído na seara do direito positivo pátrio pela Lei nº 4.728, de 1965, que restringia a utilização desta modalidade de garantia às instituições financeiras, uma vez que o diploma legal referido versava sobre questões atinentes ao mercado de capitais. Outro passo no sentido de aperfeiçoar o arcabouço legal que disciplina o negócio fiduciário foi o Decreto-lei nº 911, de 1969, pois, até sua edição, o inadimplemento da obrigação principal garantida franqueava ao credor fiduciário a propositura de uma ação reivindicatória para consolidar a posse plena do objeto do negócio fiduciário, requisito para venda do bem. Após, ao credor fiduciário pavimentou-se uma nova via de ação, de procedimento especial, mais célere, consistente na ação de busca e apreensão, conversível em ação de depósito que, uma vez tendo ensejado a consolidação da propriedade em mãos do credor fiduciário, faculta-lhe a possibilidade de promover a venda extrajudicial do bem alienado para satisfazer seu direito de crédito.
Na seqüência desta escalada evolutiva, veio a Lei nº 9.514, de 1997, que ao dispor sobre o sistema financeiro imobiliário estendeu o campo de incidência do objeto da alienação fiduciária, até então restrito aos bens móveis, amparando o credor fiduciário titular de propriedade resolúvel de bem imóvel, com ação de reintegração de posse (ajuizável se configurado o esbulho possessório pela recusa do devedor fiduciante em entregar o bem ao credor fiduciário) e estipulando a venda do bem alienado fiduciariamente em leilão público como meio adequado para viabilizar a apuração de montante destinado a liquidação do débito em aberto relativo à obrigação principal contratada. Ato contínuo, o novo Código Civil disciplinou pormenorizadamente a propriedade fiduciária de bens móveis, deixando explícito que as demais espécies de bens seguem sob a égide das leis especiais que as regulam, tendo a Lei nº 10.406, de 2002, uma aplicação meramente subsidiária sobre tais espécies.
Ademais, neste compasso progressivo tivemos a contribuição trazida pela Lei nº 10.931, de 2004, admitindo como objeto da alienação fiduciária bens fungíveis e também a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, e alterando aspectos relacionados ao prazo e à forma de purgação da mora pelo devedor fiduciante – que tem cinco dias após o cumprimento da liminar concedida para depositar a integralidade do débito.
Disposição muito relevante acerca da matéria foi inserida também na Lei nº 11.101, de 2005, que, ao tratar das falências e recuperações judiciais, excluiu expressamente os credores de contratos financeiros de alienação fiduciária, de arrendamentos mercantis, de compras e vendas com reserva de domínio e de adiantamentos sobre contratos de câmbio, da sujeição geral aos efeitos da recuperação judicial, de tal sorte que o credor fiduciário não precisa habilitar seu crédito para aguardar o pagamento da dívida.
Como contraponto à evolução do negócio fiduciário, vale registrar que alguns poucos ainda resistem ao aperfeiçoamento do instituto e entendem devida a inclusão do credor fiduciário no quadro geral de credores, mais especificamente na classe de credores com garantia real, na hipótese de recuperação judicial. Neste sentido, deve-se aprioristicamente ressaltar que este entendimento discricionário é contrário à essência e antagônico ao sopro vital do negócio fiduciário, ainda mais porque os critérios da hermenêutica, sujeitos à dialética, relativizam-se na medida em que aplica-se ao mesmo tempo a interpretação extensiva a normas que concomitantemente irradiam efeitos sob um mesmo contexto fático. Ao se fortalecer injustamente a posição da empresa em recuperação judicial, inevitavelmente desprestigia-se a higidez do crédito, ou, na assertiva do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, "é o mesmo sol que derrete a cera e seca a argila".
Glauber M. Talavera é advogado especialista em operações bancárias, financeiras e de mercado de capitais, mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e membro efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp)
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