Habeas póstumo
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Judiciário se movimenta para garantir liberdade de morto
por Aline Pinheiro
Um pedido de Habeas Corpus em favor de um preso que já morreu, e que se vivo estivesse já teria cumprido sua pena, acaba de ter uma decisão na mais alta corte de Justiça do país.
A ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, estranhou estar apreciando em 2007 o pedido de Habeas Corpus do preso, que em outubro de 2005 foi condenado a nove meses de prisão. Pediu informações, então, ao juízo de primeira instância, de Santo Ângelo (RS), e só então se ficou sabendo que o impetrante já estava morto desde agosto de 2006.
Antes de chegar ao pedido de informação da ministra, o paciente já havia sido beneficiado com uma liminar da própria Cármen Lúcia, em outubro último, e passara pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
O delito, que causou tamanha repercussão nas diversas instâncias do Judiciário brasileiro, foi um furto, com agravante de ter sido cometido durante o repouso noturno. O autor do crime, Jorge César Vieira de Lima, foi defendido pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul em primeira e segunda instância e pela Defensoria Pública da União, quando o caso avançou para o STJ e o STF.
A ministra indignou-se com a eficiência inútil dos vários órgãos que trataram do caso até que ele chegasse ao Supremo: “Tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto a atuação da Defensoria Pública acionando este Supremo Tribunal Federal deram-se sobre um defunto”, admirou-se.
Cármen Lúcia lembrou que os tribunais já estão abarrotados de processos de seres vivos. “E, para tanto, o que mais falta é tempo”, disse. E acrescentou: “Não compete aos tribunais superiores estar a buscar dados primários e imprescindíveis para que uma ação possa ter seguimento, que dirá para ser proposta”.
A ministra lembrou que, sem a informação do juiz de Santo Ângelo, o pedido de Habeas Corpus teria chegado às últimas conseqüências: os ministros do Supremo teriam, juntos, discutido e analisado a possível liberdade de um morto.
Procurada pela Consultor Jurídico, a assessoria de imprensa da Defensoria Pública da União explicou que a DPU só atua no processo quando este chega aos tribunais superiores e ao Supremo. Portanto, não teria como saber se o réu estava vivo ou morto. Segundo a assessoria, o Ministério Público gaúcho recorreu ao STJ e, quando o TJ remeteu o processo para o superior, o condenado já estava morto. Se houve erro, portanto, foi da base, informou.
Veja a decisão da ministra Cármen Lúcia
HABEAS CORPUS 92.862-5 RIO GRANDE DO SUL
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. MORTE DO PACIENTE EM PERÍODO ANTERIOR À IMPETRAÇÃO. NOTÍCIA DO ÓBITO DO PACIENTE CIENTIFICADO POR JUIZ. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
RELATÓRIO
1. Em 23.10.2007, a DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO impetrou o presente habeas corpus, com pedido de liminar, em favor de JORGE CÉSAR VIEIRA DE LIMA, contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que, em 28.6.2007, deu provimento ao Recurso Especial n. 920.022, restabelecendo a sentença penal condenatória de fls. 23-31.
O caso
2. Tem-se, nos autos, que o Paciente tinha sido condenado pelo Juízo da Vara Criminal da Comarca de Santo Ângelo — RS, em 19.10.2005, à pena de um ano e quatro meses de reclusão, em regime inicialmente semi-aberto, e ao pagamento de dez dias-multa, pela prática de furto durante o repouso noturno (art. 155, § 1º, Código Penal – fls. 23-31).
3. Irresignada, a defesa do Paciente interpôs recurso de apelação, parcialmente provido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para afastar a majorante do repouso noturno e, por conseqüência, diminuir a pena para nove meses de reclusão, mantida a pena de multa (fls. 54-61).
4. Contra aquela decisão, o Ministério Público do Rio Grande do Sul interpôs Recurso Especial (fls. 37-53), conhecido e provido, à unanimidade, pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (fls. 54-61), para “restabelecer a r. sentença condenatória” (fl. 60).
5. No presente habeas corpus, o Ministério Público sustentou, basicamente: a) a nulidade da instrução probatória, porque o Paciente teria sido retirado da sala de audiências, no momento da oitiva das testemunhas, “SEM QUALQUER JUSTIFICATIVA RAZOÁVEL PARA TANTO” (fl. 4); e b) a atipicidade da conduta, alegando que incidiria, no caso dos autos, o princípio da insignificância.
Este o teor dos pedidos:
“Diante de todo o exposto, requer a defesa pública a concessão de medida cautelar para que seja determinada a SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE imposta ao paciente nos autos do processo nº 029/2.04.0005868-8, da Vara Criminal de Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, até decisão final no presente habeas corpus. (fl. 10).
(…)
Ao final, requer a Defesa:
1) Com fulcro no artigo 564, inciso IV, do Código de Processo Penal, requer ordem de habeas corpus para que seja declarada a nulidade absoluta do feito e da condenação, a partir da audiência de instrução e julgamento, renovando-se o ato com a presença do réu e de seu defensor, ou, havendo a necessidade de sua retirada da sala de audiência, que seja consignado em termo os motivos de tal proceder;
2) Com base no Princípio da Eventualidade, requer, ainda, a concessão de ordem de habeas corpus para que seja declarada a atipicidade da conduta do paciente com base no princípio da insignificância, absolvendo-o da acusação formulada nos autos do processo nº 029/2.04.0005868-8, da Vara Criminal de Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul;
3) Ainda com base no Princípio da Eventualidade, caso mantida a condenação, pugna pelo afastamento da qualificadora prevista pelo § 1º do art. 155 do CPB, tendo em vista a ausência de provas quanto à sua configuração”
6. Em 24 de outubro de 2007, deferi o pedido liminar para que fosse sobrestada a execução da pena privativa de liberdade imposta ao Paciente nos autos da Ação Penal n. 029/2.04.0005868-8, em curso na Vara Criminal de Comarca de Santo Ângelo-RS, até o julgamento final do presente habeas corpus.
Em razão dos autos se encontrarem devidamente instruídos com cópia dos documentos necessários ao perfeito entendimento da questão debatida, dispensei informações e determinei, na seqüência, a manifestação da Procuradoria-Geral da República (fls. 67-74).
7. A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pelo “… conhecimento parcial do writ e, na parte em que conhecido, pelo seu indeferimento” (fl. 84).
8. Considerando-se o período que medeava entre a data da sentença e a da presente impetração, solicitei informações ao digno juiz de Santo Ângelo, perante o qual se processara a ação penal questionada.
Como a pena era de apenas um ano e quatro meses de reclusão, em regime inicialmente semi-aberto, cuidava-se de apurar se teria sido ela cumprida, se teria havido prescrição, dentre outros dados.
9. Surpreendentemente, o digno juiz de direito de Santo Ângelo comunicou o óbito do Paciente, ocorrido em 29.08.2006, vale dizer, vinte e dois dias após a interposição de recurso especial pelo Ministério Público gaúcho.
Quer dizer: tanto o Superior Tribunal de Justiça, quanto a atuação da Defensoria Pública acionando este Supremo Tribunal Federal deram-se sobre um defunto…
É certo que a atuação da Defensoria Pública busca eficiência em benefício de necessitados. Urge, entretanto, que os nobres membros desta prestigiosa carreira não deixem de atentar para as situações fáticas dos casos trazidos aos nossos abarrotados tribunais, que têm o direito de milhares de vivos para cuidar. E para tanto o que mais falta é tempo para que todas as causas possam ser solucionadas com presteza pelos juízes, a fim de que as decisões não deixem de ser prestadas em prazo razoável, como constitucionalmente determinado.
Não compete aos tribunais superiores estar a buscar dados primários e imprescindíveis para que uma ação possa ter seguimento, que dirá para ser proposta. Trazidos elementos na impetração de uma ação nobre como é o habeas corpus não há razão para que o órgão judicante deles duvide, especialmente quando apresentados por órgão da advocacia pública, como é a Defensoria.
Sem a informação prestada pelo juiz de direito de Santo Ângelo, o que poderia perfeitamente ter ocorrido, também este Supremo Tribunal poderia ter julgado um morto, pronunciando-se sobre uma ação penal já extinta.
Pelo exposto, não conheço deste habeas corpus, cujo arquivamento determino (art. 21, § 1º, do RISTF).
Junte-se a petição n. 182697.
Publique-se.
Brasília, 14 de dezembro de 2007.
Ministra CÁRMEN LÚCIA
Relatora