A reforma tributária sonhada pelo governo
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Proposta em elaboração prevê a unificação de impostos federais e o fim da guerra fiscal, mas pode ficar no papel se não for enviada logo ao Congresso
Enquanto se debate as dificuldades para convencer o Senado a prorrogar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), os técnicos do governo Lula costuram os acertos finais na proposta de reforma tributária que será enviada ao Congresso. Ela terá dois pilares fundamentais. O primeiro é a unificação das 27 legislações hoje existentes no país do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que seria substituído pelo Imposto sobre Valor Adicionado Estadual (IVA-E).
O segundo é a substituição dos tributos federais que incidem sobre o faturamento pelo IVA Federal (IVA-F). Ele absorveria o PIS/Pasep, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico-Combustíveis (Cide-Combustíveis).
Após ouvir diversos especialistas, parlamentares e outras autoridades envolvidas na discussão da matéria, o Congresso em Foco detalha a seguir os principais pontos da proposta em gestação no governo. E mostra também as dificuldades que existem para fazer a reforma realmente vingar. Porque, mesmo nos corredores governamentais, há consenso de que ela tem prazo de validade para ser apresentada. Se não for enviada ao Congresso rapidamente e votada já no primeiro semestre do próximo ano, admitem os estudiosos do assunto, a reforma tributária correrá o risco de, mais uma vez, ficar só no papel.
Idéia é simplificar
A idéia do governo é fazer não uma reforma revolucionária em relação à estrutura tributária hoje em vigor, mas, sobretudo, promover mudanças que simplifiquem e desburocratizem o sistema tributário. Para os municípios, a principal alteração seria a substituição do Imposto Sobre Serviços (ISS) pelo Imposto sobre Vendas a Varejo (IVV).
Mas é no caso dos estados que as modificações tendem a ter maior impacto. O maior sonho do governo Lula, em especial da equipe do ministro da Fazenda, Guido Mantega, é acabar com a guerra fiscal. Segundo estima a Fazenda, ela hoje subtrai dos cofres estaduais perto de R$ 25 bilhões por ano. Todo esse dinheiro é oferecido a empresas, na forma de incentivos fiscais, com o objetivo de atrair investimentos para os estados.
"O grande nó da reforma tributária não são os tributos federais, mas o estadual. É o ICMS", afirma a líder do PT no Senado, Ideli Salvatti (SC). “Ainda há alguns entraves a serem decididos, principalmente entre os secretários da Fazenda”, acrescenta ela. Para acabar com a desigualdade tributária entre os estados e eliminar a guerra fiscal, a proposta do governo é substituir o ICMS pelo IVA-E, que teria uma legislação única, sugerida pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e aprovada pelo Senado.
Com a mudança, o imposto continuaria a ser cobrado no estado de origem do produto, mas seria apropriado pelo estado de destino. Além disso, o governo admitiria certa autonomia dos estados para mudar a alíquota de um número limitado de produtos, como combustíveis por exemplo.
Os estados prejudicados pelas mudanças seriam compensados por um fundo de desenvolvimento regional. O líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS), ressalta que as mudanças da origem para o destino terão que ser graduais para funcionar e que a idéia é retirar as compensações progressivamente até que se atinja uma divisão tributária mais “justa”.
Ele também reforça o objetivo de evitar mudanças radicais. "Entendemos que a reforma tem que ser lenta e gradual na sua implantação. Se alguém pretender votar uma reforma que derruba, por exemplo, em 10% a arrecadação de um estado de um ano para o outro e aumenta em 20% a de um outro estado, é evidente que isso é o início de uma paralisia. É melhor fazer algo para, progressivamente, se chegar aonde se quer do que querer uma coisa extremamente forte e dura e demorar mais dez anos discutindo e sem conseguir fazer nada”, defende Henrique Fontana.
O líder do governo acredita que as distorções do nosso atual sistema tributário representam um poderoso impulso para a reforma. “O Brasil tem um sistema, em primeiro lugar, bastante caótico pela complexidade. São 27 legislações estaduais de ICMS, o que permite a guerra fiscal, que é algo absolutamente atrasado do ponto de vista de uma boa gestão das variáveis econômicas do país”, destaca ele.
O fator tempo
A nova proposta do governo já tem o apoio do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), que representa diversos segmentos da sociedade. Entre os 47 conselheiros que fazem parte do grupo de trabalho sobre a reforma tributária (veja a composição), estão empresários, sindicalistas, economistas, tributaristas, advogados e artistas.
Os conselheiros temem, no entanto, que o adiamento do envio da proposta ao Congresso acabe por prejudicar ou até impossibilitar que a reforma seja aprovada no governo Lula, isto é, até dezembro de 2010.
"Se demorar muito, não vai dar tempo de votar, pois no próximo ano tem eleições municipais e depois já começam as articulações para as eleições nacionais", alerta o coordenador do grupo de trabalho do CDES sobre a reforma tributária, o ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-deputado federal Germano Rigotto (PMDB).
Na avaliação de Rigotto, se não for aprovada até maio do ano que vem, a reforma não sairá da gaveta. "Se demorar muito a enviar, não vai dar tempo de votar até maio, e aí não se vota mais", acredita. "Precisa ter disposição política para fazer avançar essa proposta. No Congresso vai tem uma boa discussão sobre o tema, mas primeiro é preciso chegar lá", acrescenta o ex-governador gaúcho.
O ministro das Relações Institucionais, José Múcio, garante que essa disposição existe. Segundo ele, a proposta só não foi encaminhada ainda porque sua formatação final depende do futuro da CPMF. "Se a CPMF não for aprovada, teremos que fazer modificações na proposta", justificou. Ele garantiu, no entanto, que tão logo a CPMF seja votada, a proposta será encaminhada ao Congresso. “Talvez até este ano ainda”, afirmou o ministro ao Congresso em Foco.
O que muda
Outro ponto considerado fundamental entre as mudanças que o governo tentará implementar em sua proposta de reforma tributária é a redução da contribuição previdenciária sobre a folha de salários. Hoje, além da parcela descontada dos trabalhadores, o empregador é obrigado a recolher para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) 20% do valor bruto pago em salários. Esse valor poderia ser reduzido para até 15%.
Além do fim da guerra fiscal, considerada um dos grandes entraves para o desenvolvimento regional, a reforma tributária pretende aumentar o número de contribuintes e combater a sonegação.
Para tanto, além da simplificação que será feita com a redução dos impostos sobre bens e serviços, o governo pretende implantar meios de controle mais rígidos para combater a sonegação. Entre eles, estão a implantação da nota fiscal eletrônica, o cadastro sincronizado e o Sistema Público de Escrituração Digital (SPED).
Com isso, a longo prazo, a idéia é ampliar o número de contribuintes e reduzir os impostos setoriais, possibilitando, assim, a diminuição nos preços que serão repassados aos consumidores. "Os que não pagam impostos o objetivo é trazê-los para dentro do sistema. Mas é claro que os efeitos não são imediatos, eles demandam tempo de transição”, destaca Germano Rigotto.
O ex-governador gaúcho ressalta, no entanto, que a proposta de emenda constitucional da reforma não irá contemplará todas as modificações necessárias para resolver os problemas do sistema tributário brasileiro. Outras alterações virão na forma de projeto de lei, observa.
“Tem mudanças infraconstitucionais, como o aumento progressivo do Imposto de Renda da Pessoa Física [IRPF], mas isso pode ser feito depois. O importante agora é garantir as mudanças na Constituição. Mas é preciso ter vontade política para avançar nessa proposta”, acrescenta.
Propostas do Legislativo
Autor de uma das propostas do Legislativo para a reforma tributária (a PEC 31/2007), o deputado Virgílio Guimarães (PT-MG) reclama que o projeto do governo não detalha quais serão as regras para a compensação dos estados que forem prejudicados com a substituição do ICMS pelo IVA estadual.
“Para o governo, o ICMS pode ser resolvido com um acordo no Confaz. Eu opto por fazer isso na PEC [proposta de emenda constitucional 31/2007]. Não vi a proposta do governo ainda, até porque ela não está escrita, mas acho que o Legislativo é muito melhor do que o Confaz para legislar”, argumenta o deputado.
Os principais pontos da PEC 31/2007, que em vários aspectos lembra a proposta desenhada pelo governo, são a unificação e a nacionalização da legislação do ICMS; a transformação do PIS/Pasep e da Cofins em um único imposto federal com a mesma hipótese de incidência das referidas contribuições; a permissão do aproveitamento recíproco de créditos acumulados do ICMS, do IPI, do ISS e do imposto que substituirá o PIS/PASEP e a Cofins.
A PEC de Virgílio prevê, ainda, a transformação da CPMF em contribuição permanente, ressalvando que ela terá “caráter primordialmente fiscalizatório”. Além de estabelece uma série de mecanismos com o objetivo de “melhorar a administração tributária, controlar a carga tributária, proteger o meio ambiente e combater a desigualdade regional”.
A maior diferença da PEC em relação à proposta do governo é justamente com relação à legislação que substituirá o ICMS. Na proposta do governo, os estados de destino se apropriariam de 100% do imposto pago. De acordo com o deputado petista, o destino teria apenas um percentual da arrecadação.
“A PEC transita para o destino. Prevê uma fase intermediária. Já o governo cria um fundo de compensação para a migração imediata”, destaca Virgílio Guimarães.
Apensada à proposta de Virgílio Guimarães, que foi feita em conjunto com outros parlamentares, também tramita no Congresso a PEC 45/2007, do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR). A proposição “introduz os impostos seletivos na competência federal e estadual, pagos ao estado consumidor, através da substituição tributária, sem oneração para as exportações”. Além disso, regulamenta e limita a alíquota da CPMF, extingue a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CLSS) e transfere para os municípios o IPVA, o imposto sobre propriedade territorial rural (ITR) e o imposto sobre transmissão de herança.
PEC 41/2203
Virgílio Guimarães também foi relator da reforma tributária enviada pelo governo ao Congresso em 2003 e que resultou na PEC 41/2003. A proposta já previa a unificação da legislação do ICMS, mas esta parte não chegou a ser votada em plenário.
Na época, as modificações no sistema tributário foram divididas em etapas. A primeira delas continha apenas os pontos sobre os quais havia consenso entre deputados e senadores e foi promulgada por meio da Emenda 42/2003.
Foi essa emenda que deu as linhas gerais para a criação do Supersimples e determinou que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico, como a Cide-combustíveis, poderiam incidir sobre a importação de produtos ou serviços do exterior.
A segunda parte da reforma discutiu justamente a unificação da legislação do ICMS. Ela chegou a ser aprovada na Comissão de Finanças e Tributação em 2004, como PEC 285/2004, mas foi arquivada este ano após a aprovação da PEC 58/2007, que previa modificações no Fundo de Participação dos Municípios, também incluídas no projeto da reforma tributária que aguardava entrar na pauta de votação.
Foi justamente esse arquivamento que levou o deputado Virgílio Guimarães a protocolar a PEC 31/2007, que, na prática, retoma os pontos ainda não votados nesta segunda fase da reforma tributária.
“Não concordo com quem diz que nada foi feito até agora. A reforma de 2003 foi excelente. Mudou Cofins, fez o Supersimples. Agora só precisamos dar continuidade às próximas etapas da reforma”, argumenta o deputado.
Reforma tímida
No final de novembro, o ministro da Fazenda, Guido Mantega fez uma reunião com os sindicalistas para apresentar as linhas gerais da reforma tributária do governo. “Foi apresentada uma proposta genérica em uma reunião que durou duas horas. Mas a proposta não foi detalhada. Por questão de sigilo, os ministros não apresentaram números”, relatou Luiz Fernando Emediato, conselheiro da presidência da Força Sindical que representou a central na reunião.
Para Emediato, a reforma do governo é boa, porém, tímida. “Acaba com a guerra fiscal, mas não toca na folha de pagamento e não fala em imposto sobre fortuna, em imposto sobre herança e em previdência. Não dá para se fazer uma reforma tributária sem falar de previdência. Então não é uma reforma, é um remendo”, argumenta o sindicalista.
O ministro chegou a solicitar que os sindicalistas fizessem uma contra-proposta. “É difícil fazer uma proposta em cima de outra que não sabemos qual é. Mas os sindicatos já têm suas propostas elaboradas há anos. A Força mesmo tem um livro de mais de 600 páginas que foi publicado em 1993 com uma proposta ampla de reforma tributária e fiscal”, destaca o sindicalista.
Segundo ele, a idéia da Força Sindical é reduzir o número de impostos e definir um novo pacto federativo. “Nossa proposta visa transformar os 50 e tantos impostos que existem hoje em oito ou nove, além de discutir onde será gasto o dinheiro”, afirmou Luiz Fernando Emediato.
Bom momento
As medidas de aumento de controle do pagamento de impostos, como a nota fiscal eletrônica, têm sido apresentadas pelo governo como o grande diferencial da atual reforma com relação àquelas anteriores que naufragaram. Além disso, o bom momento econômico também é citado como propício para se fazer mudanças efetivas na Constituição no que diz respeito à tributação.
“A proposta tem tudo para acontecer, porque estamos em um momento econômico muito bom. Como o país está com superávit, as mudanças não vão afetar a arrecadação de maneira a inviabilizar a reforma”, acredita o tributarista Lúcio Abrahão, sócio-diretor de Tributos da consultoria BDO Trevisan.
“Agora é fato que o sistema tributário do jeito que está tem mais facilidade de trabalhar com o aumento de carga, por meio de medidas provisórias, por exemplo”, acrescenta ele, demonstrando sua preocupação com a vontade política do governo para colocar em prática as mudanças.
Para o tributarista, o importante agora é aproveitar o momento econômico para fazer as reformas constitucionais e deixar os ajustes para depois. “Nós tínhamos a expectativa que a reforma fosse proposta este ano, mas o governo já deixou para 2008. E se a reforma for encaminhada tarde, temo que o governo não tenha tempo hábil para fazê-la”, destaca. “Então é um banho de água fria o governo ter adiado [o envio da proposta ao Congresso], porque a preocupação é retomada”, reclama.
“É óbvio que a reforma por si só não vai resolver o problema da sociedade, mas ela melhora a situação, porque foi amplamente discutida pela sociedade. Ela é um desenho muito razoável para que se comece a mudar o sistema tributário”, defende. ”É lógico que depois precisarão ser reajustados, mas é um começo bem interessante”, admite Lúcio Abrahão, lembrando que a CPMF e a folha de pagamento já estão sendo discutidas em projetos à parte.
Oposição cética
Apesar das promessas do governo, a oposição tem se mostrado cética quanto ao andamento da reforma. "O governo não tem uma postura honesta com relação à reforma tributária. Ele teme perder as receitas em curto prazo. Não pensa que em longo prazo ganhará muito mais receitas", analisa o senador Alvaro Dias (PSDB-PR).
Para o tucano, a promessa da reforma é apenas uma manobra para conquistar o apoio dos senadores quanto à prorrogação da CPMF. Eu só acredito na reforma tributária se nós recusarmos a prorrogação da CPMF. Se o governo quisesse fazer a reforma, daria prosseguimento aos projetos que já tramitam no Congresso. Além disso, se houvesse um interesse real de reforma, não haveria por que prorrogar a CPMF até 2011", argumenta o senador.