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A periferia vira fábrica de negócios

Publicado em:

Jornal do Comércio

 

 

 

Roberta Mello

Quem nunca ouviu que a dor ensina a gemer e que a união faz a força? Pois quem passa a vida tendo de encarar desafios, driblando o preconceito e o aperto nas contas e rodeado de exemplos de superação confirma, todos os dias, que esses ditos populares são verdadeiros.

Não é de hoje que as comunidades de baixa renda servem de abrigo para soluções inovadoras e grandes novidades em arte e cultura. No entanto, foi há pouco tempo que essas ações se tornaram oportunidade para geração de renda e começaram a atrair o olhar de mais gente, transpondo as mais diferentes fronteiras. O interesse pelo que acontece à margem aumentou nos anos 2000, lembra o empresário e professor universitário Eder Luiz Bolson. O reconhecimento da comunidade internacional ao que acontecia em Bangladesh e a premiação do economista Muhammad Yunus, conhecido como “o banqueiro dos pobres”, com o Prêmio Nobel da Paz, foi um dos marcos desse movimento.

O processo de criação de empresas nas periferias brasileiras reflete um movimento antigo, principalmente entre as mulheres, de adequação às necessidades da família, explica a gerente de atendimento do Sebrae/RS, Viviane Ferran. “Há muito tempo elas têm que se virar, costurar para fora, cuidar dos filhos umas das outras em creches improvisadas, fazer salgadinhos para festas e ter salões de beleza nos fundos de casa”, diz Viviane, salientando que esse é o embrião da onda empreendedora atual.

John Jardim é mais um dos moradores da Vila Maria da Conceição, na zona Leste de Porto Alegre, que cresceu vendo gente que, diferentemente dele, podia comprar roupas e calçados que ele também gostaria de ter. “Uma vez, eu queria ir a uma festa e não tinha dinheiro para comprar uma roupa nova e bonita. Daí resolvi pegar um dinheirinho que ainda tinha, comprei um pedaço de tecido e fui numa costureira aqui de perto para fazer uma bermuda e uma camiseta”, conta.

Com uma roupa recém-confeccionada nas cores dourado e preto, Jardim foi ao baile cheio de atitude. “Meus amigos gostaram tanto que não acreditaram que eu mesmo tinha desenhado. Eles sugeriram que começasse a fazer para vender. E eu fui em frente.”

Assim, sem muita pretensão, nasceu a DeBoxe, uma marca de vestuário da periferia para as periferias. As roupas têm influência do que o criador vê pelas ruas e da moda Swag – estilo nascido nos Estados Unidos que mistura as influências do rap e do hip-hop e que, no Brasil, foi adotado também pelo funk, principalmente da vertente “ostentação”. “Elas são exclusivas, podendo ser feitas sob encomenda, de acordo com o desejo do cliente. Nunca gostei dessa coisa de sair na rua e ver várias pessoas vestidas igual a mim. Acho que esse é o diferencial da DeBoxe”, determina.

Moda, música e atitude andam juntas em todo lugar. E na zona Leste da Capital – berço de importantes músicos da cena Funk do Estado – não é diferente. Aproveitando os holofotes que recaem sobre os funkeiros locais, Jardim aposta em uma estratégia de marketing bastante simples para colocar a marca em evidência. Ele oferece as peças para os Mestres de Cerimônia (MCs) conhecidos usarem nos shows e espera que os clientes cheguem através das redes sociais (Facebook e Instagram) e WhatsApp.

Jardim conta que tudo começou com os produtores da festa Projeto X, popular no Morro da Cruz. Hoje, mais MCs usam a DeBoxe. Entre os it boys da marca estão MC Dino, MC Felipinho, MC Jhorley e MC Blade. “Depois do boca a boca, essa é uma das maneiras que mais gente chega até mim”, garante o empresário, que já vendeu para gente de toda Porto Alegre, de cidades vizinhas, como Guaíba, e até de outros estados, entre eles o Rio de Janeiro.

Além de gerar renda para Jardim e sua família, o pequeno comércio da DeBoxe tem outros impactos. Suas vendas estimulam que o dinheiro levado à Conceição, na maioria das vezes através do trabalho prestado nos bairros centrais, fique na comunidade.

Parece pouco, mas isso é determinante para o desenvolvimento econômico e social das comunidades de periferia. A moeda circulando dinamiza o mercado local, empodera e fortalece a organização comunitária. Além disso, salienta Bolson, reduz a criminalidade e cria oportunidades de empregos para os jovens perto de casa, o que é fundamental para que essas pessoas não sejam expostas a rotinas estressantes.

Segundo o professor, a maioria dos executivos e estrategistas das grandes multinacionais que atuam nos países em desenvolvimento tende a focar suas ações de marketing nas classes de maior poder aquisitivo. Contudo, a pesquisa Mosaic Brasil da Serasa Marketing Services aponta que os jovens da periferia e a massa de trabalhadores urbanos são os grupos que mais se destacam entre os consumidores brasileiros.

“O mercado de baixa renda para bens e serviços no Brasil envolve 87% da população e o seu potencial de vendas se aproxima dos R$ 500 bilhões”, complementa Bolson, que estudou o segmento ao escrever seu livro Tchau, Patrão!. Se os jovens empreendedores raramente pensam em vender para quem mora nas periferias ao definirem um público alvo, ninguém melhor do que quem está nesses lugares e sabe o que é demandado para abocanhar essa fatia do mercado.

“A cooperação é o estágio avançado da consciência humana” está escrito em uma das paredes da Cooperativa Unidas Venceremos (Univens) de Porto Alegre. Ali, em um galpão improvisado, 22 mulheres do bairro Sarandi, no extremo Norte de Porto Alegre, decidem, em conjunto, os rumos da Justa Trama, marca de roupas para a qual trabalham e da qual todas são donas.

A Univens é o primeiro elo da cadeia produtiva do algodão ecológico, uma iniciativa audaciosa até para os empresários mais experientes, criada em 2005 pela cooperativa com o apoio da rede local integrante do Orçamento Participativo. Dez anos depois, a rede é composta por outras seis organizações das cinco regiões do País.

Cada elo é responsável por uma etapa da produção. A gaúcha Univens concentra a administração da Justa Trama e confecção das peças, assim como a Cooperativa Fio Nobre, de Santa Catarina. No Ceará e no Mato Grosso do Sul, associações de agricultores orgânicos realizam o plantio do algodão. Em Rondônia são feitos botões e outros artigos decorativos a partir do açaí. A Cooperativa de Produção Têxtil de Para de Minas (Minas Gerais) cuida da fiação e tecelagem.

Nelsa Fabian Nespolo é uma das pioneiras por trás do negócio. Moradora do bairro e uma das fundadoras da cooperativa, ela conta que no início as duas maiores dificuldades eram conquistar credibilidade e competitividade. “Imagina nos anos 1990 você chegar e tentar abrir uma cooperativa de mulheres em um extremo de Porto Alegre. Foi preciso muita persistência”, enfatiza.

Nelsa conta que muitas mulheres chegaram à Univens depois de perderem o emprego ou de não aguentarem a jornada pesada de trabalho em outras empresas da área têxtil longe de casa. O cooperativismo, modelo eleito pelas porto-alegrenses, é um dos sistemas mais difundidos de organização dos trabalhadores para a formalização do negócio próprio. Segundo Nelsa, no bairro Sarandi fazer uma cooperativa foi a escolha para pressupor a criação de relações trabalhistas justas e a troca, de igual para igual, de conhecimento.

Um novo tipo de negócio que visa ao lucro sem virar as costas para quem mais precisa bateu à porta da casa de Eni Leal da Rosa no Morro da Cruz em 2013. Na verdade, quem chegava à comunidade onde vive a costureira eram a economista Marília dos Reis Martins e a estudante de Direito Gabriela Ruiz Gonçalves, duas jovens que decidiram criar um empreendimento para incrementar a receita das mulheres daquela região.

Do encontro bastante improvável, nasceu a Colibrii, uma marca de acessórios feitos com materiais reutilizados que, em pouco tempo, conquistou admiradores em todo o Estado. Só em 2014, primeiro ano da marca, foram comercializadas 500 peças. Ao grupo, somou-se Alice Meditsch, estudante de Design, mas está enganado quem pensa que as quatro artesãs parceiras apenas executam o que as sócias da empresa projetam. Assim como Eni, outras costureiras, como Marli Garibaldi da Silveira e Tatiana Garibaldi da Silveira, passaram a se dedicar à marca como fonte de renda.

A experiência das costureiras foi determinante na hora de definir como seria o produto da Colibrii e é levada em conta para determinar o preço de cada peça. “Eu bati o pé que tínhamos de usar o jeans de calças usadas e fazer um produto meio eterno e unissex. A mochila tinha que ser diferente dessas que a gente encontra em todo lugar”, diz Eni, orgulhosa. O papel da Colibrii é colaborar com o desenho dos produtos, fazer a gestão do negócio e estabelecer uma ponte por meio das vendas na internet e em lojas parceiras, além da participação em feiras. O faturamento é dividido entre costureira e empresa, cabendo à primeira 60% do lucro com cada adereço vendido.

Márcio Figueira não quis se acostumar com os comentários hostis e os olhares desconfiados construídos com a criação de estereótipo daqueles que vivem na Restinga, na zona Sul da Capital. Incomodado com a reprodução de uma imagem que não condizia com tudo o que via quando saía de casa, ele resolveu criar a TV Restinga na Web, a agência de propaganda WPoa e o aplicativo para tablets e smartphones TingaCity.

Com estrutura simples e transmissão pela internet, a TV Restinga é uma das iniciativas de comunicação comunitária mais respeitadas do Estado. Com site, perfil em redes sociais e no Youtube, os vídeos abordam o que acontece nas 27 comunidades que compõem a Restinga com um prisma diferente.

“Somos muitos estigmatizados. Claro que aqui tem criminalidade, como em todo lugar, o problema é que os meios de comunicação tradicionais só mostram este lado”, diz o empresário, entusiasmado com a possibilidade de um alcance maior com a veiculação dos vídeos em TV aberta, a partir da recente parceria com a TVE.

Christian Oliveira, morador da Restinga há 35 anos, foi um dos fundadores do canal ao lado de Figueira. Também dono da rede de cabeleireiros Black Chic, com três unidades no bairro, ele cresceu vendo a mãe trabalhar em casa ou no salão de outras pessoas e “aprendeu tudo com a melhor professora”. Aos 16, não teve dúvida: ia seguir os passos da matriarca da família, mas seria patrão de si mesmo.

Ao ver que o público masculino tinha poucos lugares para cuidar da beleza, decidiu que seu negócio focaria esse nicho. Os cortes de cabelo seguem as últimas tendências, o acabamento é feito à navalha para ficar bem desenhado. As mulheres também têm espaço, mas os homens são maioria nas cadeiras dos colaboradores, muitos deles formados em oficinas ministradas gratuitamente por Oliveira. Figueira e Oliveira são dois dos muitos exemplos de pessoas que decidiram investir no próprio negócio em um dos maiores bairros de Porto Alegre depois de se depararem com um desafio.