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Anotações acerca da teoria geral da isenção tributária

Publicado em:

Mauro José Gomes da Costa
acadêmico de Direito na Universidade Federal de Pernambuco, Recife (PE)

Com escopo de situar no tempo a temática da isenção e da imunidade tributárias, vamos identificar uma doutrina tradicional – que chamaremos de doutrina clássica –, a qual parece ter influenciado de maneira decisiva a feitura do Código Tributário Nacional – CTN (lei 5.172/66). Possivelmente, o seu maior corifeu é o saudoso professor Rubens Gomes de Souza.

Definia o preclaro mestre a incidência tributária como sendo "a situação em que o tributo é devido por ter ocorrido o fato gerador" (1). Noutro giro, entendia a não-incidência como justamente o oposto da incidência, vale dizer, ausência do surgimento da relação jurídico-tributária em face da não ocorrência do respectivo fato gerador. Para ele, isenção significa o favor fiscal, instituído em lei, consistente na dispensa do pagamento do tributo devido. Portanto, na sua percepção, a dinâmica do fenômeno isentivo seria: ocorrência do fato gerador, incidência tributária, nascimento da obrigação e dispensa do pagamento do tributo devido. Está-se a ver que, numa linha de pensamento dessa natureza, a isenção é tida como instituto totalmente diverso da não-incidência tributária.

A seguinte passagem ratifica o quanto se afirmou: "é importante fixar bem as diferenças entre não-incidência e isenção: tratando-se de não incidência, não é devido o tributo porque não chega a surgir a própria obrigação tributária; ao contrário, na isenção o tributo é devido, porque existe a obrigação, mas a lei dispensa o seu pagamento; por conseguinte, a isenção pressupõe a incidência". (2)

Assim é que aludido pensamento fez escola, a ponto de o legislador do CTN adotar como epígrafe do "capítulo V" a expressão "exclusão do crédito tributário" e proclamar no seu art. 175 que a isenção exclui, ao lado da anistia, o crédito tributário.

Outros juristas de escol perfilharam igual posicionamento. Em síntese apertada, anotamos:

1. Amílcar de Araújo Falcão: "nela há incidência, ocorre o fato gerador. O legislador, todavia, seja por motivos relacionados com a apreciação da capacidade econômica do contribuinte, seja por considerações extrafiscais determina a inexigibilidade do débito tributário." (3)

2. Bernardo Ribeiro de Moraes: "a isenção tributária consiste num favor concedido por lei no sentido de dispensar o contribuinte do pagamento do imposto. Há concretização do fato gerador do tributo sendo este devido, mas a lei dispensa seu pagamento."(4)

3. Fábio Fanucchi: "se houver dispensa em lei contemporânea à data de ocorrência do fato gerador, está-se diante de uma isenção." (5)

Rubens Gomes de Souza divide as isenções em subjetivas (aquelas que levam em linha de conta a pessoa do sujeito passivo) e objetivas (deferidas em atenção à natureza do ato, fato ou negócio sujeito ao tributo).

Outrossim, o sobredito professor leciona que as imunidades seriam espécies de proibições constitucionais, que se erigem em limitantes da competência tributária.

Alfredo Augusto Becker contesta a formulação da doutrina clássica. Abeberando-se da lição de Pontes de Miranda, procede a alentado estudo da fenomenologia jurídica da incidência da norma, no qual vislumbra quatro espécies básicas de regras: Regra juridicizante (aquela que possui a virtude de tornar jurídico o fato sobre o qual a hipótese incidiu), Regra desjuridicizante total (a só circunstância da sua incidência "desconstituí (desjuridiciza) o ato jurídico nulo ou anulável, expulsando-o do mundo jurídico e apagando toda a sua existência), Regra desjuridicizante parcial (pelo seu incidir, promove a redução do conteúdo jurídico de relação jurídica pré-existente) e Regra não-juridicizante (sua "incidência tem, como única conseqüência, deixar bem claro que o acontecimento daquele fato ou fatos nada acrescentaram ou diminuíram ao que já existia no mundo jurídico" (6)). Com fulcro nessas meditações, Becker afirma que as regras jurídicas isentivas são não-juridicizantes, para, logo adiante, concluir que, na isenção, a regra jurídica de tributação não incide porque faltou ou excedeu um dos elementos da sua hipótese de incidência. Tal elemento faltante ou excedente é que irá entrar na composição do suporte fático da regra isentiva, cujo incidir obstará o surgimento da obrigação tributária, vale dizer, "A regra jurídica da isenção incide para que a de tributação não possa incidir."(7)

Eis a possante objeção que, praticamente, fere de morte a tese esposada pela doutrina clássica.

É em Souto Maior Borges, com o seu livro "Isenções Tributárias", que a teoria tradicional sofrerá o abalo definitivo. A primeira grande contribuição de Souto é a tentativa de conceituação correta da isenção e da imunidade. Afastando a idéia de que tais institutos consistem em limitação da competência tributária, esclarece que "a competência tributária consiste, pois, numa autorização e limitação constitucional para o exercício do poder tributário."(8) "A imunidade é um princípio constitucional de exclusão da competência tributária."(9) Noutro falar: quem sofre constrição é o poder de tributar, a competência tributária, ao contrário, já nasce limitada, valer dizer, competência tributária abrange tanto as autorizações quanto as proibições previstas constitucionalmente, é o desenho que resulta da articulação simultânea das faculdades e limitações no quadro das exações tributárias. Outrossim, observa que, nem sempre, a isenção pode ser considerada como renúncia ao poder de tributar, em face da existência das ditas isenções heterônomas. (10)

Segundo leciona, a isenção deve ser percebida na sua feição mais geral de não-incidência. Assim, busca evidenciar duas espécies de não-incidência: a pura e simples ("a que se refere a fatos inteiramente estranhos à regra jurídica de tributação, a circunstâncias que se colocam fora da competência do ente tributante" (11) ) e a qualificada ("divida em duas subespécies: a) não-incidência por determinação constitucional ou imunidade tributária; b) não-incidência decorrente de lei ordinária – a regra jurídica de isenção" (12)). Tal como está posta pelo autor, somos compelidos a reconhecer um defeito na formulação conceitual da não-incidência pura e simples, pois, ao afirmar que nela estariam incluídas circunstâncias que estão fora da competência do ente tributante, fez incluir também as situações de imunidades, de vez que, nestas hipóteses, também falece competência ao ente. Aliás, quer-nos parecer, data venia, que o autor retoma a imprecisão ao aduzir que "a não-inicidência pura e simples ocorre quando inexistente os pressupostos de fatos idôneos para desencadear a incidência, automática e infalível, da norma sôbre a sua hipótese de incidência realizada concretamente (fato gerador)." (13)

Partindo da constatação de que a ausência da menção de fatos ou conjuntos de fatos na tessitura da hipótese de incidência da regra tributária impede o nascimento da obrigação tributária, rechaça a tese tradicional da isenção como dispensa legal do pagamento do tributo devido. Noutro giro, também opõe sérias objeções a tal doutrina, afirmando que, a tese da dispensa legal do pagamento, supõe um a posteriori lógico e cronológico do incidir da norma isentiva, o que configura evidente contra-senso, pois se a norma exonerativa estivesse em contradição com a tributante, a solução plausível seria a exclusão de ambas do mundo jurídico, em virtude do princípio jurídico da contradição, vale dizer, normas conflitantes se excluem mutuamente.

É bem de ver-se, conseguintemente, que a crítica de Souto Borges colhe a tese tradicional tanto na sua feição conceitual quanto no iter da fenomenologia da incidência jurídica.

Aproximando-se da lição de Alfredo Augusto Becker, Souto Borges conclui que o disciplinamento dos fatos geradores da obrigação tributária e a hipótese de incidência da isenção é, de regra, simultâneo. E que, do ponto de vista da dinâmica jurídica, a norma isencional incide sobre o fato, obstando a ulterior incidência da norma tributante. São suas estas palavras: "a norma que isenta é, assim, uma limitadora ou modificadora: restringe o alcance das normas jurídicas de tributação; delimita o âmbito material ou pessoal a que deverá estender-se o tributo ou altera a estrutura do próprio pressuposto da sua incidência." (14)

Importa ainda reter as conclusões a que o autor chega em face do confronto entre os institutos da isenção e da imunidade. Para ele, a distinção está em que a imunidade pré-exclui a criação de regras jurídicas de tributação, pela subtração do poder tributante do ente, enquanto a isenção opera a retirada do ato, bem ou pessoa do suporte da norma instituidora do tributo. Assim, na imunidade, o ente não tem poder para tributar, na isenção, por decisão legislativa infraconstitucional, não ocorre a tributação de fatos que, em face da competência tributária, poderiam integrar a compostura da hipótese de incidência da norma tributante. O sobredito mestre preleciona também que a nota comum de todos os casos de não-incidência (não-incidência pura e simples, isenção e imunidade) é justo a circunstância de se constituírem em fatores obstativos do nascimento da obrigação tributária.

No esforço de bem compreender o tema, surge o ensejo de trazer à baila o pensamento de Paulo de Barros Carvalho. Do seu ponto de vista, as principais teorias acerca da isenção merecem objeções. Contra a doutrina clássica alinha a crítica do artificialismo do fenômeno jurídico da incidência que está subjacente nessa tese. É que, captar a isenção como dispensa do pagamento do tributo devido, eqüipole admitir que a regra tributante possui maior "velocidade de incidência" do que a isencional, pois esta só colheria o fato após a juridicização promovida por aquela. Outrossim, não calha a assertiva de que a isenção é favor legal, de vez que a mesma é regida por razões de interesse público, a circunstância de operar-se ou não benefício às pessoas não possui a virtude de desnaturar seus efeitos jurídicos.

O aludido professor faz a mesma ressalva quanto a "cinemática" da incidência jurídica encontrada nos ensinamentos de Alfredo Augusto Becker e Souto Maior Borges, agregando, relativamente a este, a precariedade científica da noção de não-incidência, pois parte de uma definição negativa, não logrando, portanto, dilucidar efetivamente a natureza intrínseca do instituto.

Paulo de Barros, propondo a diferença entre normas de comportamento (aquelas preordenadas ao regramento da conduta das pessoas) e normas de estrutura (dedicadas à normatização do relacionamento de normas de conduta entre si, abarcando, assim, a problemática da produção, modificação e expulsão de normas do sistema jurídico), conclui que as isenções tributárias são espécies de normas de estrutura. Lançando mão da sua proposição descritiva da regra-matriz de incidência, na qual visualiza dois segmentos: a hipótese ou descritor, integrada pelos critérios material (verbo mais complemento), espacial e temporal, e a conseqüência ou prescritor, formada pelos critérios pessoal e quantitativo (base de cálculo mais alíquota), sustenta que "a regra de isenção investe contra um ou mais dos critérios da norma-padrão de incidência, mutilando-os, parcialmente." (15)

Assim, advoga que isenção pode colher a funcionalidade da regra-matriz tributária de oito maneiras distintas: mutilando o critério material, seja no verbo, seja no complemento. Colidindo com o critério temporal ou espacial. Atingindo o critério pessoal, tanto no lado do sujeito ativo quanto no do sujeito passivo e, finalmente, reportando-se ao critério quantitativo, ora na base de cálculo, ora na alíquota.

Em face do exposto, forçoso reconhecer que Paulo Barros defende a simultaneidade da dinâmica normativa, vale dizer, a norma tributante e a isencional atingem o fato no mesmo instante.

Por derradeiro, vejamos o pensamento de Sacha Calmon acerca do tema. De logo, avulta ressaltar que o douto professor acolhe as críticas que são desferidas contra a doutrina clássica. A distância que o separa das formulações de Souto Borges e Paulo de Barros Carvalho residente precisamente na circunstância de que o mesmo nega a existência de uma norma jurídica isencional.

Sacha Calmon observa, inicialmente, que, na composição da hipótese de incidência de qualquer norma jurídica, entram várias leis ou artigos de leis. Aduzindo, em seguida, que "a norma jurídica surge da proposição da ciência que descreve o direito, sob a forma de juízo hipotético (…) desvendando a lei que é a "fórmula legislativa literal" através da qual, por um ato de vontade, o direito é posto, vige e vale." (16)

Fundado nesses pressupostos, conclui que os casos de isenção, tanto quanto os de imunidades, não constituem norma jurídica autônoma, mas tão-só integram o desenho da hipótese de incidência tributária, ou seja, delimitam o âmbito de incidência da norma, gizando os lindes dos fatos que sofrerão a incidência da norma tributante. Daí optar "por esquema conceitual, expresso da seguinte maneira: Acontecendo "H", "T" deve ser, onde H= Hipótese de incidência da regra de tributação. T= Dever tributário decorrente. A hipótese de incidência, contudo, apresenta a seguinte composição: H= A – (B+C), onde H= hipótese de incidência, A= fatos tributáveis, B= Fatos imunes e C= fatos isentos." (17) Este é teor das suas ilações: "a hipótese de incidência da norma de tributação é composta de fatos tributáveis, já excluídos os imunes e os isentos." (18)

Conclusões

A competência tributária deve ser compreendida como o conjunto de faculdades legislativas e proibições atribuídas constitucionalmente ao ente tributante, donde constitui equívoco pretender que a imunidade erige-se em limitação daquela competência, é limitação do poder de tributar, não da competência tributária, esta é apenas parcela de poder tributante que o ente possui e que decorre das limitações introduzidas a nível constitucional.

Haja vista que as isenções heterônomas são medidas excepcionais no sistema da Constituição vigente, a isenção, de regra, poderá ser concebida como autolimitação da competência tributária.

A não-incidência pura e simples representa o conjunto de fatos que são, por natureza, totalmente incompatíveis com o fato gerador do tributo, enquanto as situações de não-incidência qualificada (imunidade e isenção) abarcam fatos que, não fosse previsão normativa expressa na Constituição ou na lei, conforme o caso, integrariam o suporte fático da norma tributante, vale dizer, a isenção e a imunidade colhem fatos que estariam naturalmente abrangido pela tributação, em face da compatibilidade que guardam com os fatos tributáveis.

Sendo caso de não-incidência, a isenção obsta o surgimento do liame obrigacional, razão pela não se opera qualquer exclusão do crédito do crédito tributário, assim é de se catologar à conta de impropriedade vocabular do legislador o insculpido no art. 175 do CTN.

Não há, do ponto de vista da fenomenologia da incidência jurídica, o menor sentido em atribuir maior celeridade para atingir os fatos a essa ou aquela norma, todos incidem simultaneamente, bastando para tanto a ocorrência, no mundo das coisas, dos fatos que entram na descrição da sua hipótese de incidência.

Entendemos que a formulação mais completa é a do professor Sacha Calmon, pois a isenção e a imunidade entendem com a delimitação do campo de incidência da norma tributária. Demais, o sobredito mestre, fundamenta sua construção teórica em estrita consonância com as categorias colhidas ao nível da Teoria Geral do Direito. Aliás, tanto o modelo proposto por Souto Borges quanto por Paulo de Barros Carvalho têm por conseqüência limitar o âmbito de incidência da regra jurídica tributante.


Notas

1. SOUZA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo : Ed. Resenha Tributária, 1975. p. 96

2. Idem, p. 97

3. Apud COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 393

4. ibidem

5. idem, p. 394

6. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3 ed. São Paulo : Lejus, 1998, p.304

7. Idem, p. 306

8. BORGES, José Souto Maior. Isenções tributárias. São Paulo : Sugestões Literárias, 1969. p. 27

9. Idem, p. 207

10. No sistema da Constituição Federal de 1988, as isenções heterônomas são, ex vi do art. 151, III, vedadas. Nada obstante, a mesma Carta excepciona tal regra no art. 155, XII, "e" e "f".

11. Idem, p. 154

12. Ibidem

13. Idem, p. 208

14. Idem, p. 189-190

15. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 10 ed. São Paulo : Saraiva, 1998. p. 331

16. Idem, p. 392

17. ) Idem, p. 397

18. Idem, p. 396


Bibliografia

SOUZA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo : Ed. Resenha Tributária, 1975.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense.

________. Curso de direito tributário. 4 ed. Rio de Janeiro : Forense, 1999.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3 ed. São Paulo : Lejus,

1998.

BORGES, José Souto Maior. Isenções tributárias. São Paulo : Sugestões Literárias, 1969.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 10 ed. São Paulo : Saraiva, 1998.