COFINS e as Sociedades Prestadoras de Serviços: Uma Análise Distinta Ainda não Abordada pelo Supremo Tribunal Federal
Publicado em:
Gustavo Brechbühler Advogado; Pós-Graduado em Direito Tributário pelo IBET; Especialista em Direito Financeiro e Tributário pela UFF-RJ; Sócio de Zalcberg Advogados Associados. |
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Alberto Abib Advogado integrante de Zalcberg Advogados Associados. |
Elaborado em 04/2007
O Supremo Tribunal Federal está diante de uma tarefa inglória: ou bem reconhece a certeza e a correção do entendimento firmado no Eg. Superior Tribunal de Justiça, ou, como parece, dará solução em sentido diametralmente oposto, nos termos daquilo que restou afirmado na Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) 1-1/DF, com relatoria do Ministro Moreira Alves.
Em suma, decidirá tema de grande repercussão nacional, qual seja, a ocorrência, ou não, de revogação do artigo 6º, inciso II, da Lei Complementar (LC) nº 70 de 1991, pelo artigo 56, da Lei nº 9.430 de 1996, e, assim, definirá se mantém em vigor a isenção do recolhimento referente à contribuição para seguridade social (COFINS) por parte das sociedades civis de prestação de serviços de profissão regulamentada (elencadas no artigo 1º, do Decreto-lei nº 2.397 de 1987).
Com efeito, a LC 70/91 trata, exclusivamente e de modo especial sobre o tema da isenção da contribuição em referência, tendo criado expressa e especificamente, em seu artigo 6º, inciso II, isenção (limitação do poder de tributar) para tais sociedades quanto à necessidade do recolhimento da COFINS.
Tal isenção, por se mostrar notoriamente justa e manifestando nítida intenção do legislador ordinário, mereceu o competente acolhimento pelos nossos Tribunais, especialmente pelo Eg. STJ, quando foi ulteriormente corroborada, consolidando este entendimento no Enunciado constante da Súmula 276(1) deste Eg. Superior Tribunal de Justiça.
Todavia, com o advento da Lei nº 9.430/96, que, além do questionado dispositivo revogador, trata de várias outras matérias distintas, como, por exemplo, IRPJ, IPI, CSLL e procedimento administrativo fiscal, gerou-se um impasse sobre a suposta revogação do artigo 6º, inciso II, da Lei Complementar mencionada, uma vez que esta suposta revogação teria ocorrido de modo tácito, e não expresso, como sói deveria acontecer, conforme a lei exige.
Atualmente, no Supremo Tribunal Federal, a discussão encontra-se focada, portanto, no princípio da hierarquia das leis, alegando, os defensores da não revogação, existir hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, mormente pelos seus procedimentos diferenciados de elaboração e aprovação, razão pela qual a primeira não poderia ser revogada pela segunda.
Essa corrente defende a idéia de que se a referida matéria, por ter sido tratada por lei, elaborada através de procedimento mais rigoroso (lei complementar), não poderia ser revogada por uma lei ordinária (elaborada e aprovada por procedimento mais simples), restando infringido o referido princípio.
Por outro lado, aqueles que defendem a existência da revogação, dizem que a LC nº 70/91 possui apenas, em seu aspecto formal, a condição de lei complementar, em razão da inexistência de reserva material de competência da CRFB/88, e, assim, afirmam que a mesma possui conteúdo apenas de lei ordinária, razão pela qual, balizando-se na ADC nº 1-1/DF, que incidentalmente (obiter dictum) declarou a distinção entre a lei complementar e a lei ordinária, afirmando que a primeira é formalmente diversa, e não hierarquicamente superior, sendo, portanto, passível de revogação o dispositivo da lei complementar, materialmente ordinário, por lei de mesma estatura.
Contudo, vale dizer que a discussão é distinta e mais simples do que parece, e, para buscarmos solução adequada, devemos observar e estudar o tema sob perspectiva diversa, analisando critérios diferentes dos já anteriormente e exaustivamente discutidos. Para tanto, expõe-se a argumentação que segue.
Com efeito, já que estamos a tratar de conflito entre normas e duas disposições, devemos, sempre, partir das noções básicas determinadas pelo artigo 2º, §§ 1º e 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), que dispõem, em síntese, (i) que a revogação acontece quando lei posterior declarar expressamente a revogação da anterior, o que não ocorreu, visto que em nenhum momento foi expressamente mencionado pela lei nova, supostamente revogadora, o dispositivo que se desejaria revogar, frise-se, de modo expresso e inequívoco como a lei determina; ou, (ii) quando regular inteiramente a matéria tratada pela lei anterior, o que tampouco ocorreu, uma vez que existem na lei posterior apenas dois artigos tratando do assunto, registre-se, sem esgotar qualquer tema, contrariamente ao que fez a LC 70/91, que tratou inteiramente da COFINS; e, por fim, (iii) deixa claro, ainda, que nova lei estabelecendo disposições gerais ou especiais, a par das já existentes, não modifica nem revoga lei anterior.
Neste último aspecto, tampouco se pode cogitar da revogação, pois a lei ordinária nova não tratou de forma geral, muito menos especial, o tema da isenção da contribuição, muito pelo contrário, tratou de forma ampla a suposta nova incidência para as pessoas jurídicas, e não o tema da isenção.
Sobre as normas da LICC, vejamos o que pontificou o jurista Zeno Veloso(2):
"A revogação, pode ser, ainda, expressa e tácita. É expressa a revogação quando a lei posterior, declara, direta e explicitamente, que estão extintos e sem mais vigor todos os dispositivos, ou alguns dispositivos da lei anterior."
Repare-se então, que uma vez ausente na Lei 9.430/96 qualquer dispositivo que expressamente tenha declarado revogada a norma especial isentiva constante do art. 6º, inciso II, da LC 70/91, não há razão para vê-la expurgada do mundo jurídico.
Noutro sentido, tratando, desta vez, sobre a revogação tácita, colha-se, da mesma forma, a lição do nobre jurista paraense(3):
"Revogação tácita dá-se, também, quando a lei nova regula inteiramente a matéria tratada na lei anterior."
Constate-se, então, em reforço ao já aduzido, que em nenhum momento se pôde ver na Lei Ordinária em debate qualquer aspecto de inteireza ou completude quanto à matéria da COFINS. O que se vê, a bem da verdade, é um emaranhado de matérias tributárias, e perdido, sem qualquer razão se ser e existir, lê-se, em seu art. 56, uma norma genérica e abrangente, que sob nenhum aspecto nos leva a concluir ou cogitar de ter revogado a norma isentiva antes tratada.
Some-se, ademais, que a LC nº 95 de 1988, cujo artigo 9º regula inteiramente o assunto, afirma que a cláusula de revogação "deverá indicar expressamente as leis ou disposições legais revogadas."
Ora, se por pura intelecção daquilo que dispõem as normas da Lei de Introdução ao Código Civil, já se tem como insuperável o raciocínio de que a Lei 9.430/96 não revogou a norma isentiva constante do art. 6, II, da LC 70/91, mesmo num esforço hercúleo de retórica, muito menos se poderá admitir como válida tal assertiva, quando dispositivo inequívoco e específico sobre o tema, constante de Lei Complementar, determina que há de vir expresso na lei revogadora qual a lei ou disposição revogada. Em resumo, o próprio ordenamento exige tal declaração expressa, o que inocorreu – art. 9º da LC 95/98.
Dessa forma, deve-se interpretar o dispositivo dito revogador sob outro prisma, qual seja, especificamente o do Direito Tributário, com respeito e observância direta aos dispositivos constantes da Lei Geral (CTN), conforme o art. 146, III, da CF/88, isto é, literal e restritivamente, conforme determina o artigo 111, inciso I, do Código Tributário Nacional (CTN), sem contudo deixar de aplicar os supramencionados artigos da LICC.
Assim, não se pode utilizar interpretação extensiva no caso, pois, agindo de tal maneira, põe-se manifestamente de encontro às regras aplicadas ao direito, de modo geral, e, em especial, às matérias tributárias.
Além disso, tratando da matéria em questão, de forma genérica e tácita, simplesmente lançando no decorrer do seu texto legal dois artigos perdidos, sem nenhuma razão de ser, fazendo ligeira menção ao tema, como fez a Lei nº 9.430/96, evidente é a ofensa ao princípio da especialidade, conforme o artigo 2º, §§ 1º e 2º, da LICC.
Tratando sobre o critério da especialidade, convém trazer à tona, as precisas lições de Norberto Bobbio(4), pois embora escritas em tese, tamanha é a sua perfeição para aplicação ao tema que parece que o mesmo estava previndo o que viria a se discutir. Leia-se:
"Conflito entre o critério de especialidade e cronológico: esse conflito tem lugar quando uma norma anterior-especial é incompatível com uma norma posterior-geral. Tem-se conflito porque, aplicando o critério da especialidade, dá-se preponderância à primeira norma, aplicando o critério cronológico, dá-se prevalência à segunda. Também aqui foi transmitida uma regra geral que soa assim: Lex posterior generalis, non derogat priori especiali. Com base nessa regra, o conflito entre o critério da especialidade e critério cronológico deve ser resolvido em favor do primeiro: a lei geral sucessiva não tira do caminho a lei especial precedente. O que leva a uma posterior exceção ao princípio lex posterior drogat priori: esse princípio falha, não só quando a lex posterior é inferior, mas também quando é generalis (e a lex prior é especialis). Essa regra, por outro lado, deve ser tomada com uma certa cautela, e tem um valor menos decisivo que o da regra anterior. Dir-se-ia que a lex especialis é menos forte do que a lex superior, e que, portanto, a sua vitória sobre a lex posterior é mais contrastada. Para fazer afirmações mais precisas nesse campo, seria necessário dispor de uma ampla casuística." – grifos nossos
Como já dito, a Lei nº 9.430/96, trata de diversas matérias, e, inseriu aleatoriamente em seu texto os dois artigos acima mencionados, tratando de forma ampla, genérica e injustificada a pretendida e novel obrigação tributária das sociedades civis de prestação de serviços de profissão regulamentada, e, de modo tácito e não literal sobre a isenção debatida ou supostamente revogada, o que a lei, diferentemente, exige que aconteça, em se tratando de norma com conteúdo isentivo.
Perceba-se, outrossim, com escólio nas lições acima, que o caso, portanto, é o do dilema descrito por Bobbio acima. Esta é a casuística de que ele mesmo acenou que precisaria examinar. Vejam, temos uma norma especial anterior (lex prior especiali – LC 70/91, inciso II do art. 6º) e uma outra geral posterior (lex posterior generali – art. 56 da Lei 9430/96), que são incompatíveis.
Todavia, como ele mesmo descreveu Lex posterior generalis, non derogat priori especiali. A norma que pretensamente teria, tacitamente, revogado a isenção anterior para as sociedades civis de profissão regulamentada, é pois, nitidamente uma lex posterior generali, pois, tratou num único artigo da novel incidência a uma ampla categoria de contribuintes, de forma absolutamente aberta, genérica, ampla, o que lhe confere, pois tal, característica. É quase uma norma que dispõe que as pessoas jurídicas devem recolher tributos. Beira a ausência absoluta de técnica legislativa, e que bem por isso, só trouxe problemas.
Ao final Bobbio, nos traz um dado interessante. Na comparação dos critérios para a interpretação correta dos textos de lei, fica evidente que quando se está diante de normas com distintas hierarquias e segurança e a força nessa conclusão são evidentes e absolutamente induvidosas. Entretanto, quando se está diante de conflito entre especialidade e cronologia, a conclusão da norma prevalecente é mais difícil de ser alcançada, e bem por isso, que os Tribunais Superiores estão e têm uma imensa dificuldade em decidir correta e definitivamente o tema em questão.
Sabemos, outrossim, que alguns doutrinadores não se apegam à definição e à distinção acima destacada de Bobbio, concluindo pela revogabilidade da norma anterior, caso a lei nova revogadora seja geral e regule inteiramente a matéria(5). Entretanto, não podemos deixar de notar que a distinção apontada por Bobbio é de inteira pertinência ao caso em exame, notadamente, pois, consegue resolver definitivamente o conflito das normas em combate, sem que a abordagem seja a já superada tese de violação à hierarquia das leis.
Em resumo, não poderia um diploma legal que não disciplina especificamente uma matéria, principalmente sendo esta de conteúdo isentivo, revogar dispositivo de diploma anterior que tratou do assunto de forma incisiva, minuciosa, específica, completa, literal e expressa, implicando, para aplicação e compreensão dessa revogação, uma interpretação desautorizadamente extensiva, e não, restritiva, o que fere diretamente as regras de interpretação do direito, principalmente as normas tributárias de conteúdo isentivo, como visto anteriormente.
Destarte, como o novo diploma não revogou expressamente o dispositivo isentivo; não esgotou, muito menos tratou inteiramente da matéria da lei anterior; nem mesmo se tratou de norma específica, fica claro que disposição geral ou especial não modifica nem revoga a lei anterior, e por isso, nos quer parecer, ainda que não analisando propriamente tais argumentos, que andou bem o Eg. STJ, na medida em que, inconscientemente, respeitou e observou as normas de interpretação de conflitos de leis, em suma, tratou-se de decisão correta, muito embora tomada com base em motivos equivocados.
Nesse sentido, caberá ao Eg. STF, como guardião precípuo e maior da CRFB/88, e, por via de conseqüência, garantidor da rigidez e da correta interpretação das normas infraconstitucionais em face e conforme a Constituição, considerar os argumentos aqui expostos, sob pena de, em não o fazendo, estar violando expresso preceito legal e, pois, constitucional, contrariando as suas funções magnas.
Notas
(1) Súmula nº 276 do STJ: "As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado."
(2) VELOSO, Zeno. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. Belém: Unama. 2005. p. 34
(3) idem, ibidem
(4) BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª ed. Tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UNB, 1999. p. 108.
(5) RÁO, Vicente. O Direito e a Vida dos Direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 343 Apud ROCHA, Sergio André. Treaty Override no Ordenamento Jurídico Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin. 2007, ps. 108/109.