A isenção da Cofins e a competência do STJ
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Por Rogério Aleixo Pereira
Temos acompanhado de perto as nuances jurídicas que envolvem a isenção da Contribuição para o Financiamento da seguridade Social (Cofins) para as sociedades prestadoras de serviços profissionais. Não raro verificamos que o posicionamento dos tribunais – de segunda instância e até dos superiores – alterou-se diversas vezes, o que é plenamente compreensível, conforme se verá neste breve comentário.
Temos a convicção de que essa questão não comportou nenhum precedente histórico e jurisprudencial, apesar da tese fazendária suscitar como precedente o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 1, do Distrito Federal. O histórico da edição da Lei Complementar nº 70, de 1991, era o seguinte: 1) A nova Constituição, efetivamente democrática, ao contrário das anteriores, não tinha mais do que três anos de vigência; 2) Sob o regime da Constituição anterior, as contribuições sociais eram tratadas de forma diversa da Carta de 1988, sendo obrigatória a sua instituição por lei complementar; 3) O Supremo Tribunal Federal (STF) não havia se manifestado sobre a necessidade de lei complementar para a criação das contribuições sociais sob a vigência da Carta de 1988; 4) O Finsocial era objeto de contestação por milhares de contribuintes, e os argumentos fundavam-se justamente na transmutação de sua natureza para a de uma contribuição social na nova Constituição; e 5) Havia a necessidade urgente (e infelizmente ainda há) de custear a seguridade social, cuja abrangência havia aumentado após a Constituição de 1988.
Do que se vê, o legislador “quis” produzir uma norma hierarquicamente superior e incontestável e é por isso que temos insistido que a “mens e a ratio legis” da Lei Complementar nº 70 devem ser levadas em conta na análise destas causas, apesar das lições doutrinárias de hermenêutica colocarem este elemento num plano secundário. Mas não é só.
Pedimos vênia, também, para discordar de muitos juristas de notório conhecimento jurídico, mas a controvérsia dos autos não se fixa numa afronta à Constituição Federal e nem deve ser resolvida pela suprema corte. A doutrina e o argumento fazendário que sugerem que a questão da isenção deve ser resolvida sob o prisma constitucional merecem algumas críticas contundentes.
O conflito discutido nesta causa não se dá entre a Constituição e uma norma inferior, mas entre duas leis infraconstitucionais
Segundo essas normas, o que define a natureza da Lei Complementar nº 70 é a matéria que é tratada em seu conteúdo e que, desta forma, essa norma é uma verdadeira lei ordinária, pois a competência constitucional para instituir a Cofins ficou a cargo deste último instrumento normativo. Sendo ambas normas idênticas, não há hierarquia entre uma e outra.
Nada mais simplista. Essa doutrina, que foi elaborada pelo saudoso Geraldo Ataliba e por José Souto Maior Borges, só admite a “invasão” de competência de uma lei ordinária por uma complementar simplesmente porque esta última é superior à primeira. Aí vale o brocado “quem pode o mais pode o menos”, mas isso não significa que, podendo o menos, a norma perderia suas características formais, ainda mais se o legislador escolheu propositalmente essa forma, por motivos mais do que justificados e citados anteriormente. Com a devida vênia, se concordarmos com essa doutrina, também podemos aceitar que uma lei comum poderia revogar a Constituição, se por conta de uma emenda (esperamos que o legislador não a faça) for instituído um tributo cuja competência material foi atribuída às leis ordinárias.
A base dessa doutrina é o chamado “princípio da reserva legal” das leis constitucionais, que informa que para cada item da Constituição há um tipo legal específico para regulamentação. Se esse princípio é aceito por nossa doutrina como um princípio constitucional, e cada norma tem o seu papel bem definido na regulamentação da Constituição de 1988, como pode a tese fazendária admitir que uma lei complementar poderia ter criado a Cofins? Não seria ela inconstitucional desde a sua criação, já que o tipo legal escolhido não foi o correto? Nesse sentido, ofertamos nova crítica à tese fazendária, que se esquece que só será possível admitir que uma norma possa invadir o campo de competência da outra se antes se admitir a superioridade legal entre normas.
Apesar de tanta controvérsia, não é difícil chegar à conclusão que o assunto deve ser revolvido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) pelos seguintes motivos: 1) O conflito normativo discutido nesta causa não se dá entre a Constituição e uma norma inferior, mas sim entre duas leis infraconstitucionais; 2) O histórico da questão mostra que o legislador adotou norma superior à lei ordinária para evitar discussões jurídicas, privilegiando a forma, até porque vivia um momento político, econômico e jurídico que inspirava maiores cuidados; 3) A tese segundo a qual a materialidade de uma norma complementar determinará a sua natureza e hierarquia apresenta algumas contradições; e 4) O legislador constituinte não alçou à competência do Supremo a análise da regularidade da revogação de normas infraconstitucionais em conflito.
De tudo que foi observado, não é difícil propor que não houve nenhuma usurpação de competência do Supremo pelo STJ, na medida em que a Constituição reserva a este último tribunal a competência para unificação do direito infralegal. O próprio STJ deveria rever seus atuais posicionamentos.